
4
A professora já não suportava mais. Aquela era a pior turma que alguma vez tivera a seu cargo. Nos seus longos anos de experiência nunca vira nada assim e a sua já pouca paciência esgotava-se a cada dia.
Eles gritavam, eles brigavam, mandavam papeis, borrachas e bocas uns aos outros.
Já tinha sido insultada, humilhada e desrespeitada de todas as formas e feitios por aqueles pequenos estafermos. Já não os suportava e, vindo de alguém que os devia "adoptar" como aprendizes, isso era terrível e inaceitável.
Por causa daqueles alunos iniciara uma incursão no mundo da piscofármacologia. Sentia-se nervosa só de pensar em pisar a sala de aula; as sextas-feiras eram de alívio e os domingos à tarde de terror.
Decidira acabar com este sofrimento. Não merecia essa cruz. Ia rebelar-se!
Chegou à sala naquela segunda-feira de manhã e viu o que via todos os dias: algazarra. Uns gritavam, outros corriam, mais um em cima da sua secretária e uma que escrevia no quadro enquanto o colega a usava como alvo para as suas bolas de papel. Nem notaram a sua entrada.
Escostou-se, invisível, à um canto, encheu-se de coragem e...
- CALEM-SE! TODOS SENTADOS! - a plenos pulmões, vindo do mais fundo, do mais recôndido e escondido canto escuro do seu espírito.
A sala de aula congelou-se. Todos ficaram imóveis como se alguém parasse o tempo. Espantados, viram no semblante da, outrora paciente professora, algo nunca antes observado. Algo estranho, novo e assustador. Um frio lhes correu espinha acima.
- SENTADOS, JÁ DISSE! NÃO VOLTO A REPETIR!
A pequena trupe então sentou-se. Expectantes, aguardavam o que dali viria.
A professora viu-se num impasse. Agora não poderia voltar atrás. Iniciou uma viagem sem retorno; uma batalha onde não poderia ceder um milímetro. Pensava no que fazer já que alguns insistiam em desafiá-la; riam-se baixinho, nervosos mas provocadores.
Decidiu-se por dar-lhes uma lição que jamais esqueceriam. Lição essa que pagaria com juros tudo o que lhe haviam feito passar até então. Ficariam "quites". Correria riscos, mas agora encontrava-se no ponto de não retorno.
Escreveu "2+2= " no quadro negro. Olhou para a turma e chamou: Pedro.
Não era aleatória a escolha pelo Pedrinho. O Pedrinho era o maestro daquela sinfonia dos infernos. Era o general, o padrinho, o pastor daquele rebanho de pequenas "Maria-vai-com-as-outras".
O Pedrinho era filho único. Gostava de toda a atenção que lhe pudessem dispensar. Gostava de ser o centro do universo e tudo fazia para que o considerassem assim.
Não era um rapaz brilhante, muito pelo contrário, e por isso mesmo chumbara alguns anos. Dessa forma era o maioral da turma, o mais velho, o mais alto e forte... e aproveitava-se disso. Não havia orelha na turma que já não tivesse sido aquecida pela mão do Pedrinho, nem rabo que não tivesse a marca de uma das suas sapatilhas.
Era um arruaceiro, um desordeiro e um candidato a futuro delinquente.
O Pedrinho era o alvo (e o exemplo) perfeito para a lição das lições.
- Pedro, anda cá ao quadro e resolve esta conta.
O menino levantou-se e desfilou desdém entre o corredor de carteiras. Sorriu para os outros, confiante, com a arrogância de quem já conta com a vitória antes do jogo acabar.
A professora entregou um pedaço de giz ao rapaz e insistiu no pedido.
- "Stôra", não vou resolver - diz matreiro.
- Ai não? Porquê? - pergunta a professora.
- Porque não sei.
- Não sabes? Como não? Claro que sabes.
- Ó "stôra", não sei nem quero saber! - e vira as costas à educadora.
Foi então que sentiu a mão quente e húmida da professora a agarrar-lhe o braço.
- Não te mandei sentar. Tu hoje sais daqui a saber matemática, meu amigo. Olha aqui, que número é esse?
- Não sei, nem quero saber, já disse e...
- É UM "2"! - e conta "1" e "2" enquanto desfere dois valentes estalos nas bochechas rosadas do rufia.
O Pedro estremece. Não estava à espera nem sabia de onde vinha aquela mão cheia de dedos.
A assistir a cena, a turma toda em suspensão, aturdida, boquiaberta, a beliscar-se...
- AGORA CONTA COMIGO: 3 E 4! - mais dois tabefes na cara do puto - ENTÃO QUANTOS SÃO 2+2, HÃ? DIZ LÁ, RAPAZ, DIZ!!!
- São 4, "stôra", 4!!! - lutando para não chorar à frente dos colegas (luta inglória).
- Vês? Vês como sabes? - diz calma e ternamente a professora - meus parabéns, Pedro. Pronto, agora vai, meu rapaz, vai-te lá sentar.
A professora lutava para esconder o tremor das mãos e a ansiedade que lhe inundava a alma.
- Alguém mais tem dúvidas? -perguntou à turma com um sorriso doce nos lábios - algum de vocês quer fazer alguma pergunta? Sabem todos quantos são 2+2?
- SIM, Sra"stôra", são 4 ! - responderam em uníssono.
- Muito bem! Então assim sendo, abram os vossos livros na página 26 e ...
Desde então, nunca se vira naquela escola turma tão trabalhadora, organizada e orgulhosa da sua mestra e, ainda na semana passada, ficou-se a saber que o Pedro acabara a licenciatura em Engenharia com distinção.
Já diriam os sábios populares: "nada como um bom estímulo".