25 junho 2013

A trip(a)

Primeira consulta do dia, numa segunda-feira, noite mal dormida e mau humor associado.
Chamo a primeira doente: completamente tresloucada; discurso verborreico, sem nexo, a saltar de um assunto para outro como se fosse um canguru com um foguete no rabo. Deixo-a falar, falar, falar, sem não parar e escondo-me atrás de um par de mãos a sussurrar o porquê de vir para medicina.
E então:
"Sabe doutor, eu tenho muitos gases. Tenho sempre a barriga assim inchada (não é da gordura, não...). Acho que é de ter a tripa grossa", diz ela.
"Desculpe, o que disse?", pergunto eu, tentando perceber o que tinha acontecido.
"Pois, tenho a tripa grossa, sim. Disseram-me num exame que me fizeram há uns anos. Faz sentido, Dr..Quando era pequena, lembro-me de obrar ao lado do meu irmão e olhar para as nossas fezes e perguntar a ele porque o meu cocó era maior que o dele. Ele já na altura disse-me: "és tu que tens a tripa grossa!". Vê? Sempre tinha razão, o meu irmão"

Confesso que não aguentei e escangalhei-me a rir sob o olhar incrédulo da senhora.
Haja paciência, carago, um gajo não é de ferro!!!



23 junho 2013

O verdadeiro cancro

Bonifácio carregava o exame para mostrar ao médico. Batia violentamente com os pés no chão num demonstrar inequívoco de ansiedade crescente. Finalmente ouviu o seu nome a ser chamado e dirigiu-se ao consutório.
Após os cumprimentos de ocasião, o médico pediu-lhe o exame. O clínico abriu o envelope e analisou o conteúdo. Em meio a "hum"'s proferidos pelo doutor, Bonifácio aumentava a adrenalina em circulação.
Por fim, após um longo e desolador suspiro do médico, a tão estremecedora notícia:
"Senhor Bonifácio, o meu amigo tem um cancro e o que temos de fazer agora é pensar na melhor maneira de tratar e..." 
Toda a explicação, Bonifácio ouviu sem ouvir. Só estava realmente interessado numa coisa: o prognóstico.
"Bem, senhor Bonifácio, o prognóstico para estes casos é reservado. Vai depender da resposta ao tratamento convencional: quimio, radio e, quem sabe, cirurgia."

Bonifácio saiu do consultório um pouco atordoado. Não tinha dores físicas mas sentia o seu espírito agredido no estômago, caído ao chão, continuando a ser pisoteado pela cruel verdade.
Foi directamente para casa tentando arranjar um texto tipo para passar tão devastadora informação à família; já bastava o seu próprio sofrimento.


Passaram-se alguns meses e Bonifácio respondia mal aos tratamentos. Sua última tentativa seria uma nova droga que parecia ter evidenciado benefícios para a sua doença. A esperança residia na possibilidade de ser administrada o mais rapidamente possível mas restrições orçamentais obrigavam a aprovação do pedido pelo Ministério da Saúde. 

"Bonifácio, tenho más notícias para si. O hospital não vai poder providenciar a medicação. O senhor ministro rejeitou o pedido alegando não haver evidência científica suficiente para a sua utilização".
"Mas, senhor doutor, o ministro é médico?"
"Não"
"Então não percebo"
"Eu também não, senhor Bonifácio"
"Então, e agora, senhor doutor? Sei que nunca fez um prognóstico temporal mas, quanto tempo me resta?"
"Bem, sem rodeios, Bonifácio, sem esta droga... talvez 2 meses, mais coisa, menos coisa"

Bonifácio abandonou o hospital. Vagueou por algum tempo pela baixa de Lisboa e decidiu-se por caminhar um pouco mais até a avenida João Crisóstomo, nº9. Chegando lá, aguardou.

Pouco tempo depois, Bonifácio viu aproximar-se um belo carro negro. Levantou-se e esperou que o veículo se imobilizasse. 
Do carro negro, Bonifácio viu sair um senhor de facto impecavelmente engomado que concluiu ser o ministro da saúde. Abordou o senhor e perguntou-lhe em jeito de confirmação:
"Bom dia. É o senhor o excelentíssimo ministro da saúde"
"Sou sim, meu caro"
Bonifácio, ao aperceber-se da resposta positiva, retirou do bolso uma pequena Beretta calibre 22 e aplicou 5 injecções de chumbo no tórax ministerial, impelindo o alvo numa queda lenta à retaguarda, apenas amparada por metade dos seus guarda-costas, visto a outra metade estar a manietar o agressor.

O incidente chocou a pequena e anárquica república. Bonifácio foi imediatamente preso e apresentado ao juiz. Deveria ser julgado de forma célere para servir de exemplo e assim evitar alastramentos de revolta.

O julgamento de Bonifácio foi alvo da maior cobertura jornalística alguma vez vista no país. Milhares de jornalistas nacionais e estrangeiros aguardavam à porta do tribunal. Aguardavam a sentença e especulavam sobre o período de cárcere destinado ao criminoso. Alguns analistas teciam comentários sobre a terrível ironia da possível maior sentença da justiça portuguesa poder traduzir-se  num período exíguo de prisão efectiva, dado que o réu estava em fase terminal. 

Finalmente o veredito. 

Bonifácio saiu pela porta da frente do tribunal, abraçado ao advogado e à esposa, perante o olhar atónito daqueles que ali puderam estar presentes. O inocente homem entrou numa viatura e abandonou o local, ficando o seu advogado a dar explicações:
"O senhor Bonifácio sempre se declarou inocente e o juiz percebeu isso claramente após o depoimento do meu cliente"
"Mas como foi isso possível? Havia uma série de testemunhas de acusação; elas viram o seu cliente assassinar a sangue frio o ministro da saúde", perguntou incrédulo um dos jornalistas.
"Sim, claro, elas depuseram, mas de nada valeu ao Ministério Público. A nossa alegação foi muito mais forte", respondeu triunfante o advogado.
"Mas, para além da inocência, o que mais o seu cliente alegou?", questionava furioso um novo jornalista.
"Meu cliente, perante a recusa, por parte do senhor ministro da saúde, da medicação que lhe salvaria a vida, alegou obviamente legítima defesa!"




20 junho 2013

James GOLDolfini


Hoje, durante o trabalho, sinto o telemóvel a avisar-me que tinha recebido uma mensagem. Num intervalo entre consultas li "o ator que fazia os sopranos morreu: ataque cardíaco". Pensei logo no Gandolfini, já que a pessoa que escreveu a mensagem não via a série.

Gandolfini era o "boss" e por isso era reconhecido por quem não via o programa. Era ele a âncora de uma série que ia muitíssimo mais além da simples problemática da máfia. Aliás, a questão da organização era apenas um pretexto para apresentar um conjunto de outras problemáticas muito interessantes e complexas.
Um exemplo disso mesmo: um grande amigo meu, psiquiatra, dizia que pensara em escrever um trabalho sobre toda a psicopatologia existente nas diferentes personagens; psicoses, personalidades megalómanas, depressão, demência, ataques de pânico, you name it - um verdadeiro graal.
Quem nunca viu esqueça a máfia e veja por outro prisma: vai ficar espantado.


Nota: É incrível ver as manifestações de carinho e afecto que este grande actor está a ser alvo. Reconhecimento de um trabalho extraordinário e de fãs do mesmo calibre.

Até um dia, Tony.



19 junho 2013

Que nos contagie

No Brasil um aumento de cerca de 7 cêntimos nos transportes foi a gota d'água, a faísca que está a originar um incêndio social.
A revolta contra a pobreza, a violência e toda a corrupção, acumulada há décadas, insurgiu-se nas ruas.
Nós, deste lado, vamos comentando com assombro... e alguma esperança. Oxalá essa Primavera brasileira (embora lá seja Outono) contra o polvo do seu governo seja um rastilho que nos incedeie contra o nosso. 

Parabéns, Brasil!


17 junho 2013

Trocadilho

Chovia torrencialmente naquela noite de verão.

As cinco Marias vinham de retorno à casa depois da semana de estudos na capital. 
Maria Esperança era a que conduzia o carro. Mantinha-se atenta aos perigos daquela estrada molhada. Após uma semana intensa na faculdade estava ansiosa por rever a família mas não era isso que a obrigaria a acelerar. Ao seu lado, Maria Felicidade ria-se com as piadolas das companheiras do banco de trás, Maria Piedade, Maria da Saudade e Maria Preciosa, sempre a provocar o riso das companheiras da frente com os acontecimentos e desventuras semanais: as graçolas dos rapazes, as saídas nocturnas, os namoricos, a juventude... 

A amizade entre as meninas era algo mágico. Só se haviam encontrado na universidade mas parecia que se conheciam há séculos. Sentiam-se ligadas de alguma forma e havia, é certo, grande afinidade entre elas: tinham praticamente a mesma idade, partilhavam os mesmos gostos, tinham sonhos de futuro comuns e, aquilo que sempre acharam muita piada, comiungavam do mesmo nome: Maria.
Pela coincidência nominal, tratavam-se simplesmente pelo segundo nome.

Esperança, apesar da conversa animada, sorria pouco; conhecia bem o caminho que percorria mas, com tanta chuva, tinha dificuldades em identificar onde estava. 
“Esperança, estás perdida?”, brincava Preciosa, a mais galhofeira das três. 
“Não, só está difícil conduzir com tanta chuva”, respondeu a condutora. 
“Podes parar um pouco, se quiseres. Eu não tenho grande pressa”, tranquilizou Piedade. 
“Ó pá, tem piedade”, gracejou Preciosa, “eu quero chegar logo para ver o meu Diamantino. 
“Preciosa e Diamantino: o casal mais valioso”, agora era Felicidade a mandar uma graçola da qual riram-se todas. 

Esperança também rira, mas rira um riso encavacado, pouco dedicado em responder à piada. Estava preocupada; apesar de ter alguma experiência ao volante não se lembrava de ter conduzido sob condições tão adversas. 

“Estás muito quieta, Saudade. Sentes falta de alguma coisa… ou de alguém?”, mandou Preciosa enquanto piscava o olho à Felicidade que se mantinha voltada para trás. 
“Lá está tu, Preciosa. Não consegues passar sem mandar piadolas. Sim, por mim ficava por Lisboa na companhia do Augusto”, replicou Saudade, incomodada pela brincadeira da amiga. 
“E tu, Felicidade, estás a rir mas também preferias ficar por lá a namoriscar com o teu Felix. Formam o casal mais alegre da faculdade”, continua a Preciosa, a "disparar" em todas as direcções. Felicidade deu uma gargalhada muito característica dela e que combinava bem com o seu nome; ao mesmo tempo suspirou um “e vamos ter um Benjamim”.

A viagem manteve-se animada por um bom tempo... 

Então, numa curva perigosa da estrada, sob a chuva intensa que se fazia sentir e se acumulava na estrada, Esperança perdeu o controlo do carro. O veículo ziguezagueou pela via indo beijar com fulgor uma velha nogueira que morava à beira da estrada, parando instantânea e violentamente.
Em pouco tempo o silêncio apoderou-se da cena; o som do motor calou-se e os risos cessaram; apenas se ouviam as gotas da chuva sobre a chapa e o rádio do carro que insistia em funcionar e onde se ouvia uma música que as meninas sabiam de cor: “Last Kiss”. 

Todas pereceram. 
Após o embate, no automóvel, só Saudade ficou. Piedade foi atirada para longe. Preciosa perdeu a vida alguns metros à frente junto a um banco de jardim. Felicidade desapareceu pouco depois do embate. De todas, e fazendo jus ao seu nome, Esperança foi mesmo a última a morrer.

15 junho 2013

Fazer o que um político deveria fazer: ouvir o povo

Não é exagero da minha parte se vos disser que a maioria das consultas que faço diariamente têm uma grande parte do seu tempo útil gasto em críticas aos políticos em geral e a este governo em particular.
As pessoas estão descontentes e desanimadas, o que não é novidade, e para além do pulso orgânico que o médico lhes tira, também este pulso de desalento é por nós obsevado nos contactos. Também vemos o nervo das pessoas direccionado para os cargos de decisão. Também sentimos a desmoralização de quem, por ganhar pouco mais de um salário mínimo, tem agora de pagar por tudo, até para uma simples medição da tensão arterial (0.80€ num Centro de Saúde, ou seja, mais caro do que em qualquer farmácia). Observa-se a fractura existente entre um povo cada vez mais pobre e um governo cada vez mais autoritário e desinteressado pelo bem-estar dos seus concidadãos.

Infelizmente, sou um privilegiado nesta observação da lástima in loco. Infelizmente porque me rouba tempo para a medicina pura e física (no entanto, alguns estados da alma também podem vir a ser doença e, portanto, se tratam). Infelizmente apenas porque entristece e, vez por outra, desmotiva...

De todas as queixas dos doentes são estas as que me preocupam mais. Podem apresentar dores, tosse ou uma unha encravada, isso são questões físicas que ao corpo de outrem dizem respeito, mas quando começam a destilar as reclamações relacionadas com a pobreza, a exclusão, a solidão, o esquecimento a que foram atirados, demonstram que a sociedade na qual vivemos está, também ela, doente; e, dessa "doença" que me mostram, também eu sou responsável e passível de contágio.

Ontem foi mais um dia de dores e descontentamentos. Já nada me surpreende nos protestos. Existem os revoltados que esbracejam e pedem a cabeça de um ministro ou dois. Existem os resignados como o lema sempre actual do "é a vida". Existem os que vêm a luz ao fim do túnel e, portanto, saem do gabinete bem medicados. Existem os que até apoiam em parte o governo mas que acham que já se está a exagerar qualquer coisita. 
Mas ontem, apesar de já ter ouvido um pouco de tudo, uma das queixosas apresentou-me um lamento que me tocou mais profundamente. Perdera uma filha e uma neta para a França, para onde foram sob a promessa de uma vida melhor. Por essa sentença culpava o governo e os políticos. Acusava-os de serem frios e desumanos, gentinha pequena, imoral e sem alma. Não se queixava de ter sido roubada, enganada e expoliada paulatinamente dos seus direitos, apenas reinvidicava o direito de ter os seus perto de si. No fim disparou:
"- Sabe, Dr., essa gente parece não ter família nem coração. São pessoas frias, robôs. Fazer o quê, não é...", encolheu o ombro e enxugou as lágrimas mais uma vez, agradeceu a consulta e deixou o consultório.
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Os políticos são como o cometa Halley: só aparecem de tempos em tempos. Só se vislumbram em momentos de eleições. só abraçam, sorriem, interessam-se pela plebe quando dela dependem para sentar o traseiro no assento do poder. No intervalo tornam-se nos três macacos sábios... mas com pouca sapiência.
Um aviso as decisores deste país: pessoas que não têm nada a perder tornam-se extremamente perigosas. 
E estamos a ficar com poucas coisas a que nos possamos agarrar...



13 junho 2013

A doença

Portugal sentia-se mal. Sentia-se fraco, febril, com cefaleias e desvarios; sentia-se a convulsivar a qualquer momento. Queixava-se de vómitos austeros e diarreias intelectuais. Tinha ideias persecutórias nas quais seria alvo de alemães e organizações financeiras várias.
Resolveu ir a um médico cirurgião, famoso pelos seus dotes nos cortes, a ver se este lhe cortava definitivamente o mal pela raiz.

O Dr. Passos atendia em São Bento. A troco de uns bons trocos consultou Portugal.
Durante a consulta, Portugal foi contando os seus ais: "ai, que me doem as estruturas, as infra e as macro", "ai, que tenho a visão curta e não vejo o futuro", "ai, que me dói os ouvidos de tanta lamúria", "ai, que a sodomia política me fez mal às hemorróidas","ai, que me coçam as virilhas de tanto parasita"...
O Sr. Prof. Dr Passos diagnosticou, de imediato, uma neurose nesse tão estranho paciente. Considerou-o um daqueles doentes chatos que se queixam de tudo e mais alguma coisa: tudo lhe dói, até o cabelo; tudo é uma desgraça; tudo vai acabar mal; blá, blá blá. O doutorzito começava a ficar irritado com tanta queixola. "Esse Portugal é mesmo um maricas, pá; será que não vê que está tudo bem? Quem dera que os meus pacientes pudessem ver com os meus olhos", pensava o Dr.

A consulta já se prolongava no tempo quando o Dr. Passos, após profunda reflexão e uma boa dose de canastrice, resolveu dar nomes aos bois:
- Meu caro Portugal, o Sr. padece de uma espécie rara de Síndrome Metabólico Nacional. É o primeiro caso que tenho mas parece ser endémico do sul da Europa e tenho a impressão de ser bastante contagioso. Consiste, basicamente, em gorduras a mais e, consequentemente, peso a mais. O seu Estado é, portanto, obeso. A somar, o senhor tem Diabetes pública, resultado dos doces gastos dos últimos 38 anos. Sabe, as suas células viveram à grande e os seus órgãos sugaram tudo o que podiam e não podiam. Quando somos novos não pensamos no futuro e a sua democracia é um claro exemplo de uma juventude transviada... ah, e o senhor é neurótico também, já agora.
- Mas, Dr, isso está assim tão mal? O que é que se pode fazer?  
- Proponho um tratamento de choque?  
- Ok, drogas fortes...  
- Não, não, mesmo choques: electrochoques! Electroconvulsoterapia! É o melhor para essa mania de perseguição e esse fado que o senhor tem.  
- Mas, sr. Dr., pensei que a neurose era um diagnóstico secundário! E então essa gordura e a diabetes, não me podem parar o coração republicano e o cérebro democrático? O senhor não é cirurgião? Não me corta nada?  
- Bem, primeiro esses orgãos de que fala já há muito estão parados, meu caro Portugal. Além disso, há quem viva dessa gordurinha boa que tem; não lhes quer estragar a vida só porque tem a sua arruinada, não é? Quanto ao cortar, já lhe cortei as esperanças, que mais quer?    
Portugal saiu a rastejar, desmoralizado, daquele gabinete. No entanto, não satisfeito, foi procurar uma segunda opinião doutro douto senhor que consultava num palácio cor-de-rosa de Belém.
Pobre Portugal, estava mesmo perdido...

11 junho 2013

On/off

Marido e mulher entram no gabinete. Vêm os dois para uma consulta de "rotina" acompanhados pela filha.
Ela é baixa, não chega ao metro e meio bem cheinhos por uns bons quilos a mais; ele é um pouco mais alto e mais longilíneo.

Desde o momento em que os dois abrem a porta do gabinete ouço a senhora a falar. Aliás, se não estiver a exagerar, penso já ouvi-la mesmo antes de entrar no consultório.

Começo as consultas por ela. 
A senhora é daquelas pessoas que vai ao Porto para ir para Lisboa. Começa a falar em alhos e, sem se saber como e porque, altera para bugalhos. Tem um discurso verborreico incessante, rotativo, apenas com ligeiras pausas para respirar. Salta de um assunto para outro como um Cadillac de um mexicano qualquer de Los Angeles. A filha bem tenta reprimi-la mas é como se se sentasse num touro mecânico: desiste logo aos 3 segundos.

Eu deixo a simpática senhora falar, falar, falar. Não digo palavra nem faço qualquer interrogação: dou-lhe tempo de antena. Quando finalmente cede um flanco, tomo as rédeas e, passados os 15 minutos de antena (não de fama), a consulta se encerra.

Passo então para o companheiro. 
Durante todo o tempo da consulta da esposa, ele nada falou. Não abriu o bico ou prestou atenção no que foi dito. Por vezes elevava os ombros e suspirava. Parecia acostumado...
Quando finalmente pergunto "e então, sr, o que o traz cá", a senhora liga-se novamente em virtuoso e veloz discurso, tentando explicar tudo por ele e voltando às suas próprias mazelas.
Deixo-a falar por mais um ou dois minutos e então olho seriamente no rosto do seu marido e pergunto com a maior naturalidade:
- Onde é que se desliga?

Escusado será dizer que, à excepção da faladora, todos os outros riram-se.
Risota passada pude, por fim, terminar as consultas.
Que nos valha o jogo de cintura.




10 junho 2013

Pai sofre XXXII - Um milhão de quilates

A minha menina tem um amigo na escola.
Tanto ela como ele se iluminam quando se vêem. E enquanto não se encontram, parece-me, o dia não tem brincadeira, ou tem, mas sem tanto riso nem tanta graça.
A relação de amizade entre as duas crianças me enriquece. A pureza daquele amor infantil é um verdadeiro diamante. Faz-me encarar a vida de forma mais simples e perceber que, por trás de tantas nuvens, metaforica e fisicamente falando, existe realmente uma estrela para nos aquecer o espírito.

Os miúdos mais velhos perguntam a ela "onde está o teu namorado, menina?", numa jocoza brincadeira sobre os mais novos. Ela aponta para o rapaz sem saber ao certo o sentido daquela estranha palavra. Para ela é o melhor amigo, aquele com o qual tem mais afinidade, o que brinca melhor e a faz sorrir. Não há sentimento de posse ou de ciúme, apenas um desejo verdadeiro de companhia.

Confesso, no início, um pouco de ciúmes, uma verdadeira patetice e típico de um homem há muito vendido aos problemas do mundo dos adultos. Para quem já passou da primavera, a vida está carregada de preconceitos e medos irracionais e espanta-se com a naturalidade de um verdadeiro abraço desinteressado. É difícil aceitar tanta nobreza e é preciso alguma humildade para perceber que temos muito a aprender com a petizada.
Ainda faltam alguns anos até eu realmente ter de me preocupar com carcamanos atrás da minha princesa. Mas façam esforço para perdoar um pai adulto levemente enciumado e corrompido pelos males da sociedade.

Em meio a tanta "preocupação" parental consola-me esta beleza apenas proporcionada pela limpeza da alma infantil. A amizade aqui não tem cor, não tem sexo, não tem idade e, principalmente, não tem fronteiras.

Aprendêssemos alguma coisa com os pequenitos e este mundo seria um lugar melhor.


09 junho 2013

Drogas de/vidas

Vinha ela dos médicos. 
Mais uma vez carregada de receitas milagrosas para mazelas e mágoas incuráveis.
Adentrou titubeante na pequena e velha botica. Cumprimentou o funcionário e apresentou-lhe a prescrição da dermatologista.
O farmacêutico sorriu e sussurrou entredentes "um manipulado? Até que enfim", numa clara alusão da necessidade pessoal de relembrar o labor num laboratório. Já ninguém praticava "pharmácia" nestes dias, vinha tudo em caixinhas coloridas.
Ela ouviu o rumorejo e respondeu num semelhante murmúrio: "manipulai-me!"

"Manipulai meu ser. Faz dele o que quiserdes. Revirai meu corpo, penetrai-o, perfurai-o, remexei-o, centrifugai-o em rotações tamanhas capazes de desfazer meus pensamentos mais sombrios. Triturai meus ingredientes e, assim, transformai-me em cura para meus próprios males.
Manipulai meu coração. Misturai os sentimentos que lá guardo em coquetel mágico de prazer. Manipulai a bomba e programai-a para estoirar como nos filmes: exactamente no momento em que me salvais e me pondes no porto seguro dos vossos carnudos braços.
Manipulai meus sofrimentos. Aquecei-os, queimai-os, fazei-os evaporar na química dos vossos preparos. Curai-me das minhas extraordinárias dores, das inventadas, das sonhadas, das queridas e companheiras, das físicas e das psíquicas. Curai-me por completo com os vossos salgados elixires místicos.
Manipulai o meu género. Manipulai-o com vigor. Manipulai-o com o rigor e precisão das ciências exactas. Não lhe tenhais perdão. Devassai-o, sugai-o, e deleiteai-vos com os seus sucos e provai que o inferno também pode ser sagrado. Usa o vosso corpo para o vasculhar meu sexo num vai e vem insaciável e pecaminoso. Fazei da minha pélvis um brinquedo e sê criança o tempo que quiserdes. 
Manipulai o que quiserdes de mim. Fazei-me vossa sem pruridos ou arrependimentos. 
Relembrai-me que a vida, por mais sofrida, pode, por fim, ter algum mínimo sentido."

O técnico voltou-se para ela com a nítida noção de ter ouvido algo e lhe perguntou:
"Desculpe, minha senhora, disse alguma coisa?"
"Oh, sim, sim. Era mais esta receita.", respondeu trêmula.
O farmacêutico olhou para o papel e falou consigo próprio:
"Hum, pois bem... sim... lítio".

06 junho 2013

"Grousso"

“Grou” era o seu estilo.
Como a majestosa ave, também ele voou.
Levantou voo impulsionado violentamente por uma poção mágica que tomou. Líquido extraído de fruta poderosa ao paladar e olfato e que lhe deu um enérgico empurrão a coragem, lhe incrementou a força e lhe libertou a insanidade. Com os ingredientes certos da vinha, esse tal grou humano saltou do alto da sua elevada razão e, no ilimitado repique do licor, esvoaçou pelo celeste dia de verão.
Nessa encantadora viagem recarregou as baterias do seu ser e deixou-se volatizar num fumo violáceo e alcoólico que, com apenas um leve trago, seria capaz de inebriar deuses e demónios (principalmente estes últimos). Depois fez-se nuvem carregada e choveu-se por instantes, voltando a reunir-se em pingos frutados de si mesmo para prosseguir a ébria jornada.
Descansou no Alísio, deixando-se levar pela calmaria da tarde; por fim, quando o super-poder do liquor terminou, levou ao bico mais um gole da orgíaca poção... e adejou um pouco mais, migrando alegremente para o infinito.