30 maio 2014

Foxy fox

A raposinha convidou-o para um passeio.
O pequeno e matreiro canídeo puxou-lhe pela mão e cantou-lhe doces notas etílicas na regouga, enfeitiçando-o.
Ele, não resistindo-lhe aos encantos, deixou-se ir.
Subiram o monte em direcção ao covil da pequena raposa quase sem tocar o chão, tal era a leveza porporcionada pela hipnose do etilo.
Chegaram a toca da raposinha no cimo do monte, confortavelmente encondida entre verdes parras e formosas vides, e por lá ficaram.
Comemoraram durante horas a comunhão entre os dois. Dançaram cada vez mais rápido e pularam cada vez mais alto. Ele cantou cada vez mais desafinado e cambaleou cada vez mais embriagado. Após algum tempo de júbilo consumo, aterrou violentamente no chão, vencido pela vertigem alcoolémica e pelo peso saboroso do sumo arroxeado oferecido pela anfitriã.
Por fim, perdeu de vez todos os sentidos.

A raposinha vencera o fraco humano. Do cimo do seu monte ouviu-se uma espécie de uivo de triunfo estranhamente familiar... talvez, quem sabe, por se repetir com alguma frequência. 



15 maio 2014

Pai sofre XXXIV - Terror

As pessoas dizem ter medos. Têm medo da doença e/ou da morte. Têm medo do roubo e da violência e medo da pobreza e da solidão. Há pessoas que temem de tudo um pouco e temem o escuro, as aranhas, os outros e a ira de Deus. 
Declaro-me aqui também medroso: eu que também tenho medos, inúmeros deles. Medo da mentira, da traição, da perda de bens materiais ou da minha dignidade. Tenho medo da incapacidade física e, não raras vezes ultimamente, medo do meu futuro e do da minha família.
Já experimentei vários medos. Já tive cagunfa, já fugi, já fiz frente a alguns dos meus temores. Senti o medo correr-me pela espinha e o gelo a apoderar-se-me das veias, mas confesso que nunca tinha experimentado o terror.

Nunca tinha sentido de perto o efeito físico do pavor.

Agarrei a mão da mais nova e atravessamos a estrada. Para trás ficava a pequena sacada (se é que se pode chamá-la assim) da casa dos meus sogros. 
De repente ouvi um grito desesperado da minha senhora a chamar pelo nome do mais pequenito que, entretanto, fugira ao controlo de 3 adultos e do seu próprio pai. O pequeno atravessava a estrada no exacto momento em que se aproximava um automóvel. 
Ao ouvir a mãe e, ao imaginar o que poderia ser, deixei a mais velha junto ao meu carro e corri para a estrada sem sequer me preocupar com o que me pudesse vir a acontecer.
Meu olhos estavam apenas fixos no miúdo e o meu objectivo era arrancá-lo o mais depressa possível do meio da estrada. Só depois de o ter nos braços reparei que o condutor, muito prudente e ao qual não tive oportunidade de agradecer, vinha numa velocidade correcta para aquele local e tinha abrandado ao ver a criança.


Agarrado aos meus braços, o rapaz sorria sem imaginar pelo que passara. A mãe, os avós e eu, desesperados e aturdidos, olhavam uns para os outros com expressões faciais desconhecidas. Num ataque irracional de desespero, tentava-se arranjar desculpas e culpas para o acontecido. 

Geralmente os meus medos ficam dentro do meu corpo apenas alguns segundos e reflectem-se no tremer do corpo e na boca seca. Passados alguns minutos volta tudo ao normal. Neste caso foi diferente: o corpo não compreendeu o que se passou; não tremeu, não gelou, apenas reagiu de forma automática em resposta a uma mente aflita. E foi mesmo a mente que ficou com mazelas do acontecimento já que durante todo o resto do dia a cena repetiu-se na cabeça mas sempre com os finais alternativos mais tenebrosos que se possam imaginar.
Como confessei acima, já tive vários confrontos com medos mas nunca tinha sentido algo que ficasse incrustado desta forma no coração e no espírito. Imaginar a vida sem um dos meus pequenos...

O rapaz e a irmã vieram a viagem de regresso a cantar alegremente uma canção infantil qualquer; eu chorei ao longo de todo o caminho: tinha finalmente tido contacto com o sentimento de "terror".