11 julho 2014

Cagaço ventral

Chamo o doente ao gabinete. Vem hoje à consulta para mostrar alguns exames pedidos da última vez que nos encontramos.
Após as conversas de ocasião típicas de um encontro com qualquer outra pessoa, com os "bons dias" e "como tem passado" da praxe, peço-lhe os exames.
Depois de dar uma vista d'olhos a cada uma das provas ressalvei uma alteração no seu electrocardiograma.

- Bem, está tudo "ok" com os exames, Sr. "Manuel" (fictício). No entanto, aqui no seu ECG tem uma coisita menos bem, uma espécie de arritmia chamada fibrilhação auricular.
- Ó, Dr, eu sei porque tenho essa arritmia.
- Sabe? Então diga lá porquê (já ansiando por uma daquelas deliciosas histórias).
- É por causa dos nervos, Dr. E digo-lhe mais, até sei quando é que começou.
- A sério? O quê? A arritmia ou os nervos.
-  Os nervos... ou se calhar os dois. Pois bem, em 1900 e troca o passo, aqui perto do Centro de Saúde, houve uma trovoada muito forte. Andava eu no ventre da minha mãe, está a ouvir? Bem, acontece que nesse dia caiu uma faísca na casa vizinha da dos meus pais. O raio da faísca entrou pela chaminé e matou a senhora da casa que ficou carbonizada, está a ver? A minha mãezinha que ouviu o estrondo, e depois viu o corpo da mulher toda desfeita, apanhou uma carga de nervos tal que passou para mim que estava na barriga. Desde essa altura que sou estressado e é de certeza daí que vem essa arritmia.
- Pronto, tudo bem... mas vamos ter de tomar medicação, ok?
- Prós nervos?
- Não, Sr. Manuel, para a arritmia...

Quisera eu que tudo em medicina fosse tão fácil de explicar...

30 maio 2014

Foxy fox

A raposinha convidou-o para um passeio.
O pequeno e matreiro canídeo puxou-lhe pela mão e cantou-lhe doces notas etílicas na regouga, enfeitiçando-o.
Ele, não resistindo-lhe aos encantos, deixou-se ir.
Subiram o monte em direcção ao covil da pequena raposa quase sem tocar o chão, tal era a leveza porporcionada pela hipnose do etilo.
Chegaram a toca da raposinha no cimo do monte, confortavelmente encondida entre verdes parras e formosas vides, e por lá ficaram.
Comemoraram durante horas a comunhão entre os dois. Dançaram cada vez mais rápido e pularam cada vez mais alto. Ele cantou cada vez mais desafinado e cambaleou cada vez mais embriagado. Após algum tempo de júbilo consumo, aterrou violentamente no chão, vencido pela vertigem alcoolémica e pelo peso saboroso do sumo arroxeado oferecido pela anfitriã.
Por fim, perdeu de vez todos os sentidos.

A raposinha vencera o fraco humano. Do cimo do seu monte ouviu-se uma espécie de uivo de triunfo estranhamente familiar... talvez, quem sabe, por se repetir com alguma frequência. 



15 maio 2014

Pai sofre XXXIV - Terror

As pessoas dizem ter medos. Têm medo da doença e/ou da morte. Têm medo do roubo e da violência e medo da pobreza e da solidão. Há pessoas que temem de tudo um pouco e temem o escuro, as aranhas, os outros e a ira de Deus. 
Declaro-me aqui também medroso: eu que também tenho medos, inúmeros deles. Medo da mentira, da traição, da perda de bens materiais ou da minha dignidade. Tenho medo da incapacidade física e, não raras vezes ultimamente, medo do meu futuro e do da minha família.
Já experimentei vários medos. Já tive cagunfa, já fugi, já fiz frente a alguns dos meus temores. Senti o medo correr-me pela espinha e o gelo a apoderar-se-me das veias, mas confesso que nunca tinha experimentado o terror.

Nunca tinha sentido de perto o efeito físico do pavor.

Agarrei a mão da mais nova e atravessamos a estrada. Para trás ficava a pequena sacada (se é que se pode chamá-la assim) da casa dos meus sogros. 
De repente ouvi um grito desesperado da minha senhora a chamar pelo nome do mais pequenito que, entretanto, fugira ao controlo de 3 adultos e do seu próprio pai. O pequeno atravessava a estrada no exacto momento em que se aproximava um automóvel. 
Ao ouvir a mãe e, ao imaginar o que poderia ser, deixei a mais velha junto ao meu carro e corri para a estrada sem sequer me preocupar com o que me pudesse vir a acontecer.
Meu olhos estavam apenas fixos no miúdo e o meu objectivo era arrancá-lo o mais depressa possível do meio da estrada. Só depois de o ter nos braços reparei que o condutor, muito prudente e ao qual não tive oportunidade de agradecer, vinha numa velocidade correcta para aquele local e tinha abrandado ao ver a criança.


Agarrado aos meus braços, o rapaz sorria sem imaginar pelo que passara. A mãe, os avós e eu, desesperados e aturdidos, olhavam uns para os outros com expressões faciais desconhecidas. Num ataque irracional de desespero, tentava-se arranjar desculpas e culpas para o acontecido. 

Geralmente os meus medos ficam dentro do meu corpo apenas alguns segundos e reflectem-se no tremer do corpo e na boca seca. Passados alguns minutos volta tudo ao normal. Neste caso foi diferente: o corpo não compreendeu o que se passou; não tremeu, não gelou, apenas reagiu de forma automática em resposta a uma mente aflita. E foi mesmo a mente que ficou com mazelas do acontecimento já que durante todo o resto do dia a cena repetiu-se na cabeça mas sempre com os finais alternativos mais tenebrosos que se possam imaginar.
Como confessei acima, já tive vários confrontos com medos mas nunca tinha sentido algo que ficasse incrustado desta forma no coração e no espírito. Imaginar a vida sem um dos meus pequenos...

O rapaz e a irmã vieram a viagem de regresso a cantar alegremente uma canção infantil qualquer; eu chorei ao longo de todo o caminho: tinha finalmente tido contacto com o sentimento de "terror".

17 abril 2014

Crónica de uma morte anunciada

Há 4 anos escrevi o texto que se segue para desabafar. Andava eu triste e revoltado com o comportamento dos jogadores do FCP após uma derrota contra o nosso maior rival. Naquela altura não suportei o facto de jogadores com a camisa do Porto andarem a distribuir pontapés nos colegas de profissão para esconderem a incapacidade de dar a volta a um resultado.
Daí para cá já fomos tricampeões nacionais, campeões da Taça de Portugal, da Supertaça e da Liga Europa. 

Hoje faço um "re-post" daquele texto. No entanto, penso que a derrota de ontem foi mais perversa. Foi o culminar da época mais medíocre de que tenho memória e desde que há 20 anos me apaixonei pelo clube da Invicta. 
O problema não é perder para o benfica. O problema reside na incompetência, na ausência de ideias, na confusão reinante e, principalmente, no "baixar dos braços". Não ponho em causa todo o mérito do adversário, para além de injusto seria uma grande estupidez, mas não posso tolerar que se entregue os pontos daquela maneira; no FCP luta-se sempre (vide o campeonato passado)!
Fico a imaginar a quantidade de miúdos portistas que dariam tudo pelo sonho de alguma vez poderem representar o clube num jogo oficial e andam aqueles carcamanos a fazer figuras de parvo com o emblema do FCP ao peito!!! 

Espero que este post, tal como o anterior, preceda uma nova era de glória. Se for como há 4 anos, não me importo de escrever isto novamente em 2018.

Crónica de uma morte anunciada 

"O meu FCP está moribundo; procura uma nova toca onde se possa enfiar e curar as suas profundas feridas. Ontem foi atacado na sua integridade física por uma águia sem escrúpulos que se aproveitou (e bem) das fragilidades do réptil alado cuspidor de fogo.
O FCP está doente. Nele residem fungos e bactérias multi-resistentes que o vão corroendo por dentro. Esses bichos controlam a instituição e fazem com que pareça, e se comporte, com o que não é. Não há veneno, medicamento e justiça que os destrua.
O meu FCP está descaracterizado. Não tem Baías, Pintos, Gomes e Costas para o defender. Tem representantes medíocres, violentos, trapaceiros e ensandecidos que tentam vencer a todo o custo. Envergonham o clube e não são dignos da camisa azul e branca que envergam... para não falar da braçadeira de capitão.
Tenho saudades daqueles que davam tudo em campo, que não se cansavam, que vibravam com as vitórias, que detestavam e não se conformavam com as derrotas, que tinham brio, eram ilustres e nobres; tenho saudades de jogadores a Futebol Clube do Porto: Homens de garra e glória.
Os que lá estão deixaram-se matar. Ajoelharam-se perante o maior inimigo, envergonharam os que sofrem pelo FCP; são fracos, pequenos e sem carácter; não servem para o clube, não suportam o peso do emblema e dos mais de 100 anos de história da instituição.
Não vou dar os parabéns ao adversário. Não me levem a mal os amigos benfiquistas que por aqui passam, mas ponham-se no meu lugar: perder para o rival? Não é fácil... e sem dar o mínimo de luta...Ontem foi mais uma batalha perdida, mas é normal perder para um grande adversário e o que entristece é saber que este FCP já perdeu a batalha contra si mesmo.

Que se encontre cura para as nossas maleitas e que possamos enfrentar os demais com a força de outrora."

Suspiro...

13 abril 2014

94

Ela faz 94.
94 anos é muito tempo. Dos meus trinta e tais vejo-os ainda longínquos e custa-me crer que por lá passarei.
Por vezes fico a pensar em tudo o que ela passou e em tudo o que viu ao longo desses longos anos.
Ela viu, seguramente com espanto, a tecnologia dominar o quotidiano do homem. Viu o carro passar de novidade extraordinária à obsessão desnecessária. Ela viu a televisão invadir as casas e afastar as conversas da hora do jantar e também viu as pessoas passarem a conversar através de pequenos aparelhos que trazem nos bolsos das calças. Ela também soprou as velas de casa e ligou os interruptores da recém-chegada electricidade. Ela deve ter achado estranho as lembranças passarem da mente para películas de fotografia, depois para computadores e depois para lugares virtuais dos quais ela nem sequer sonha. Deve ter ficado abismada com os riscos no céu feitos pelos aviões, esses mesmos aparelhos que a levariam, anos depois, para o lado de lá do Atlântico.
O que lhe passará hoje pela cabeça quando observa este mundo e o compara com aquele, muito mais simples, que conheceu na infância?

Certamente passou por muito nesta sua longa vida. Nasceu em tempos de miséria, viveu sem luxos mas ainda foi a tempo de conhecer estes nossos tempos de fartura obscena. Viveu em tempos de guerra. Conheceu vária ditaduras e uma revolução. 
Viveu na ignorância das letras por culpa de uma vida dura, por culpa de uma cultura de trabalho e dedicação a outros bens essenciais.

A sua história de amor originou 3 filhas, 9 netos e 14 bisnetos. Penso muitas vezes na sua importância para a minha própria existência. Olho para os meus filhos e penso, não raramente, que lhe devo um obrigado: sem ela, eles não estariam por cá.
Penso naquela sua história de amor. Na sua vida dedicada ao homem que escolheu para meu avô e no exemplo que nos deixa a todos. Queira eu também, ao fim de tantos anos de sofrimento para manter o bem estar de quem se ama, poder humildemente olhar nos olhos de quem se perdeu e dizer: "podia ter feito tanto mais por ti".

Ela faz 94 anos e está há 38 na minha vida. Agradeço a qualquer divindade a oportunidade que me deu de ter por tanto tempo a sua companhia. Dou graças por poder ter apresentado a ela os meus filhos e de poder tê-la usado como cobaia da minha profissão.  
Não penso em quanto tempo mais estará cá connosco, facto inerente à fragilidade da vida aos 94, e limito-me a aproveitar da sua presença. Limito-me a mandar chalaças ordinárias à mesa do almoço dominical; limito-me a ouvir os seu infindáveis "ais" e o ranger das suas "artrósias"; limito-me a rir da sua teimosia; limito-me a vê-la rir-se das palhaçadas que os seus netos fazem. Limito-me a invejar-lhe os lindos olhos azuis, ainda cheios de vida.

Parabéns, avó, e obrigado por todos os ensinamentos passados. Que aos 94 eu também possa ter quem de mim tenha tanto orgulho.










15 março 2014

Valle, ó que valle

Ele tragou do licor e deixou-se ir, escorrendo pela ingrime montanha em direcção ao mágico valle.
Pelo alucinante caminho encosta abaixo sentiu-se feliz, ouviu-se rir por tudo e principalmente por nada; viu a vida de forma diferente: viu-a em duplicado.
Ao longo da viagem embateu violentamente contra as várias cepas do terreno, mães da mágica fruta que lhe deu de beber. Chocou com as vides e sangrou da mesma cor do fermentado que enfeitava o copo e do qual sorveu em honesta quantidade. Sujou-se com a terra santa das escarpas férteis do ouro violeta e limpou-se às parras das santas plantas licorosas.
Chegou finalmente ao destino e ainda sob efeito lisérgico da arroxeada seiva ficou deitado no valle a imaginar curvas de mulher nas montanhas à sua volta e num abraço infinito tentou envolve-las a todas.
Nesse valle encantado encontrou um rio de líquido pecado e sorveu-lhe um pouco do seu  conteúdo. Depois mergulhou no curso etílico e deixou-se ir a boiar em direcção a uma cascata vinhateira  para, por fim, afogar-se em novo valle de prazer.