15 novembro 2009

Preto e Branco


Preto chegou cansado à casa. Depois de um dia de trabalho nas obras só lhe apetecia descansar e comer o que a vontade de cozinhar deixasse. Acabou no sofá com uma mini e uma sandes de atum com ovo.
Ligou a televisão para ver o que as notícias contavam de novo. Violência, corrupção, desastres naturais, doenças, Benfica. Tudo na mesma.
Foi tomar banho.

Branco chegou à sua casa. Estava estafado depois de um dia cumprido e comprido no tribunal. Achava psicologicamente estafante a função de decidir, com base na lei e no bom senso, se alguém devia passar parte da sua vida na cadeia.
Estava faminto e foi ver o que a sua mulher-a-dias lhe deixara no forno. Sentou-se à mesa e bebeu um gole do vinho tinto alentejano que entretanto abrira.

Ambos os homens pensavam na vida.
Preto pensava nas dificuldades do dia-a-dia, na labuta dura da construção civil, nas mulheres que nunca amou e nos filhos que nunca teve. Pensava no isolamento e na pobreza. Olhava à sua volta à procura de uma solução que não passasse por mais trabalho e sofrimento. Resignou-se e enxaguou o cabelo ralo. Lavava o corpo e a alma.

Branco deglutia sofregamente uma comida fria que empurrava com mais um “trago” da mistura de Aragonês com Syrah. No processo, pensava nas decisões tomadas ao longo do dia e espantava-se por, no fim desses anos todos, ainda preocupar-se com isso. Pensava no eco que fazia naquela casa, na mulher que o esqueceu e nos fi
lhos que perdera por causa da sua obsessão pelo trabalho. Estava velho, só, perdido numa casa quase tão grande quanto a sua solidão.

Branco e preto não se conheciam, mas padeciam das mesmas doenças.

Preto voltou à sala. Sentou-se no sofá a ver um programa qualquer da TV pública. Deixou o corpo escorregar até a cabeça descansar no sofá milenar que tinha na sala. Estava cansado… há muito tempo.

Branco não se sentia bem. A refeição soube-lhe mal e sentia o estômago às voltas. Não sabia se os pensamentos tinham estragado a comida. Foi a
té a grande sala de estar e, do bar, trouxe um menino escocês de 18 anos. Juntou-lhe um amigo cubano, que ainda cheirava à coxas latinas, e ficou a mirar a lareira acesa. Mexia o gelo com o dedo enquanto tragava o tabaco. Ficou assim até adormecer, deixando cair tanto o whisky como o charuto.


Era segunda-feira de manhã e o médico legista chegava ao trabalho. As segundas eram desgracentas, já que os cadáveres “amontoavam-se” no fim-de-semana.
No entanto, aquele início de semana estava fraco em clientes e apenas dois falecidos jaziam a espera do tanatologista.

O médico legista observou as fichas dos defuntos, pegou no gravador de voz começou a descrever o indivíduo à sua frente:
“Nome: José Carlos Meireles Fonseca Preto. Idade: 52. Altura: 162 cm. Raça: Caucasiana. Nacionalidade: Condeixa-a-Nova, Portugal…”
Em seguida, ditou ao aparelho os dados do segundo corpo:
“Nome: Augusto César Sousa Branco, ou melhor, Dr. Juíz Augusto Branco. Idade:45. Altura: 178 cm. Raça: Negra. Nacionalidade: Maputo, Moçambique…”

O médico sorriu com a estranha coincidência, ligou o rádio, estalou os dedos, pegou no bisturi e confessou os segredos interiores dos dois estranhos...

Luís Fernandes Lisboa ®
Para a Fábrica de Letras





18 comentários:

Rain disse...

A única coisa que não gostei no texto foi adivinhar o fim e tirar um pouco o sabor ao final, mas a culpa é minha. Está muito bem escrito!

Francisco José Rito disse...

Muito bem feito. Diz la que é teu, anda :-)

forteifeio disse...

muito bom

a parte do Benfica é que não percebi

:)

Catsone disse...

Rain, eu senti a mesma coisa, fazer o quê, os génios são assim... LOL

Francisco, obrigado. É claro que é meu, embora o nome no fim não seja o meu (se fosse pretensioso, diria que é um heterónimo ;)

Forte, obrigado. O Benfica é sempre notícia, amigo :D

Carlos Paiva disse...

Está optimo.
Gostei especialmente da tonalidade "dark" do final.

marta, a menina do blog disse...

Muito bom!

Simples, mas com um final surpreendente!

Ceres disse...

Gostei imenso da ideia da dualidade em todas as dimensões da vida! Muito yin e yang ;-)

Johnny disse...

Para quem conhece o autor, seria mais fácil adivinhar a reviravolta, para quem não conhece (chegado da Fábrica das Letras), seria mais fácil pensar: "olha que lugar-comum: um preto nas obras e um juiz branco", o que levaria - como levou - a uma surpresa agradável no final. Sendo assim, muito bem.

meldevespas disse...

Olha eu cá não adivinhei nada! Limitei-me a saborear tudo até ao fim. Gostei do vinho Alentejano, claro, lá diz o povo, o que é Alentejano é bom! E a mim caiu-me bem este conto. Gostei.

Ginger disse...

Adorei. Achei extremamente original.
E não... não estava à espera de um desfecho desses.


*

Catsone disse...

Shadow, tks e bem-vindo . Gosto muito de colocar esses "negros" no meu texto ;)

Marta, bem-vinda.É na simplicidade que se escondem as maiores surpresas, certo?

Ceres, bem-vinda. É isso tudo ;)

Johnny, bem-vindo. Obrigado pelo comentário. ;)

Meldevespas, bem-vinda. O Alentejo não é bom, é um espectáculo. Então se formos para a gastronomia...

Ginger, era mesmo essa a intenção. Fico satisfeito por causar esse efeito.

Fiquem bem.

Sahaisis disse...

muito bom :)

Pepita Chocolate disse...

Confesso que o fim, embora algo arrepiante (bisturis e médicos legistas têm pouco em comum comigo, pelo menos por enquanto!), foi simplesmente surpreendente!

Parabéns, gostei!

Catsone disse...

Sahasis, tks ;)

Pepita: bem-vinda e obrigado.

Brown Eyes disse...

Gostei principalmente porque não adivinhei o final ahahah.

Demóstenes disse...

Improvável inversão (pelo menos em Portugal): um juiz preto de raça mas Branco de nome e um pedreiro, Preto por onomástica, branco de tez, porém.

De tal forma se imiscuiram as cores que arriscaste um resultado cinzento.

Longe disso, a meu ver, que o efeito resultou surpreendente.

Catsone disse...

Brown eyes,tks e sê bem-binda.

Demóstenes, seja bem-vindo à esta tasca. Mas que grande vocabulário, se não fosse o priberam e não entenderia metade do que escreveu :D

Ginger disse...

Epá... tava numa Google Wave e de repente vim aqui parar! =|

wtf...