03 janeiro 2010

A terra dos feios


Em resposta ao desafio "Beleza" da Fábrica de Letras.


A terra dos feios

Na terra dos feios, tudo era feio.
As ruas da terra dos feios eram feias, os carros eram feios, as casas eram horríveis, a comida tenebrosa, o ambiente aterrador.
As pessoas da terra dos feios eram… feias, claro está. As pessoas casavam-se e tinham filhos feios, vestiam-se com roupas feias e viviam a sua existência isenta de beleza.
Mas as pessoas da terra dos feios aceitavam a sua feiura. Aliás, para eles, a noção do que era feio ou bonito não existia, e assim eram felizes.

A terra dos feios estava afastada da civilização. Para chegar à terra dos feios, era necessária uma viagem penosa por estradas perigosas, esburacadas e… feias.
Não existia electricidade e outro meio de comunicação senão um telefone e o correio. As pessoas, praticamente, não tinham contacto com outros que não fossem dali e permaneciam como uma ilha em pleno continente: isolados.
As pessoas tinham poucas posses. O pouco que se amealhava vinha da venda dos produtos da agricultura a comerciantes da cidade mais próxima. Sem posses e com tudo o que precisavam logo ali, nunca saiam da terra dos feios. Não havia imigração e os poucos, que saíram da terra, nunca mais regressaram.

Bela nasceu e cresceu na cidade dos feios. Era feia como as irmãs, pais e avós. Tradição de família. Porém, não era mais feia que a filha do vizinho. Eram ambas feias.
Bela estudou na mais feia (e única) escola da terra. Compartilhava a carteira com uma colega igualmente feia e sonhava namorar com o rapaz mais porreiro da turma. Esse, no entanto, estava apaixonado por uma bola, coisa de rapazes que crescem mais tarde.

Foi mais ou menos nesta altura que o progresso chegou à terra. Começavam a ser “plantados” os primeiros postes que trariam a electricidade à população. Com a chegada da “luz”, chegaram também outras modernidades. Primeiro foi uma, depois duas, mais tarde todas as casas estavam equipadas com uma televisão. Os populares começaram a ver as notícias e a ficção dos outros. E começou a ser introduzido um novo conceito: a beleza.
As pessoas começaram a estranhar as feições, a vestimenta e os trejeitos dos que apareciam na televisão. Começaram a se olhar de forma diferente. Deixaram de se ver como iguais. Iniciaram as comparações mútuas. Afinal existiam diferenças entre os nativos. Afinal a filha da vizinha era mesmo mais feia. Afinal o rapaz até podia ser o mais simpático da turma, mas não era definitivamente o mais bonito e perdeu o encanto.

Bela foi apanhada no meio da mudança. Começou a dar ao espelho uma importância que antes não lhe reconhecia. Desejou comprar os vestidos das meninas da novela e usou maquilhagem pela primeira vez.
Bela começou a ser cortejada pelos rapazes da terra, e compreendeu o significado do seu nome. Afinal era a bela, a mais bela da cidade. Sentiu algo que nunca sentira antes, um orgulho estranho. Começou a andar em bicos de pés e de nariz empinado. Sua companheira de carteira deixou de ser igual a ela e passou a ser a feia. Mudou-se de carteira e tentou encontrar uma colega mais digna da sua companhia. Perdeu amigos e arranjou modelos.
A sua beleza mudou-se do seu interior e alojou-se exclusivamente no seu invólucro. Tornou-se oca e supérflua.
E não foi a única a mudar.

A terra dos feios entrou numa metamorfose nunca antes vista. As casas passaram a primar pela cor e arrumação. As estradas estavam cuidadas e a escola decorada. Inauguraram-se novos prontos-a-vestir, cabeleireiros e perfumarias. A revolução da beleza chegara finalmente.
No entanto, as pessoas deixaram de se cumprimentar. Ninguém acenava a cabeça ou sorria. Passavam uns pelos outros e miravam-se dos pés à cabeça. Via-se e reconhecia-se algo que nunca existira antes: a inveja.

A terra dos feios terminou a metamorfose, passou de lagarta feia para borboleta rara. E, apesar de tantas mudanças e de tanta beleza, a terra dos feios manteve-se feia… cada vez mais.


Luís Fernandes Lisboa
®



Tim Maia: Imunização Racional (Que Beleza)

26 comentários:

João Roque disse...

Um belíssimo conto, bem escolhido para essa meritória ideia da "Fábrica de Letras".
Também já lá deixei a minha "colaboração"...
Abraço.

chica disse...

Lindo conto esse que trouxeste...Quando surge a inveja, acaba com a beleza do lugar...abraços,chica

Rain disse...

Olá, gostei bastante deste texto! Mas mesmo muito, mais do que do preto e branco. Muitos parabéns!! :)

Eva Gonçalves disse...

Parabéns por este conto. Gostei bastante. :)

Teresa Diniz disse...

Pois é, Catso, muitas vezes a beleza ou a feiura está nos nossos olhos e nos sentimentos que associamos às coisas e às pessoas.
Bjs. Gostei de conhecer.

Sahaisis disse...

you're a hell of a writer ;)

Catsone disse...

Pinguim, já vi a tua contribuição mas ainda não comentei. Abraço.

Chica, bem-vinda a esta humilde casa. Obrigado pela tua opinião.

Rain, obrigadinho. Viste o que escrevi sobre o Natal?

Eva, obrigado.

Teresa, tens razão, mas penso que estas noções vão sendo criadas ao longo da nossa existência. Quando nascemos, tudo deve ser magnífico, certo?

Sahisis, não digas isso que me fazes corar ;)

Brown Eyes disse...

A informação parece que nem sempre é canalizada convenientemente. Com ela, na terra dos feios, chegaram os malefícios desta sociedade de consumo que pretende alterar tudo e todos em beneficio apenas do poder. O que se usa hoje, o que hoje é belo, amanhã está démodé. Enfim...quem segue os padrões impostos por esta sociedade perde demasiado tempo com banalidades e claro muito dinheiro. Para mim a beleza é a natural, é essa que aprecio. Aliás quem se julga demasiado belo, cultiva demais a aparência e esquece o espírito. Nesta vida interessa-me mais o comportamento das pessoas que a sua aparência. Desde que haja limpeza há apresentação, o resto são adereços, que depois de tirados corre-se o risco de nada ficar.

Sahaisis disse...

Oh...o catso é shy :p

meldevespas disse...

...e não foram felizes para sempre...muito bem escrita/descrita este abrir da caixa de Pandora. Há quem diga e ache que a estupidez anda de mãos dadas com a felicidade...se calhar tem o seu quê de verdade, "felizes os pobres de espirito"...ou não...
gostei muito

Catsone disse...

Brown eyes, não podia concordar mais contigo. Escrever este pequeno texto foi a minha forma de dizer o que disseste ;) obrigado pelo comentário.

Sahaisis, sô não... ;)

Mel, obrigado, quem vive na ignorância se mantém puro, penso eu. *

Francisco José Rito disse...

Gostei! Escreves umas coisas :-)

Abraco e uma boa noite

Su m disse...

Tal e qual como a nossa sociedade.

Parabéns pelo conto.

Ginger disse...

Uma palavra:
B R U T A L !!

E é que é assim mesmo!
Eu mudava-me para a Terra dos Feios sem pestanejar, com a condição de que nunca lá chegasse a televisão e afins. ;)


*

Catsone disse...

Francisco, olha quem fala ;)
Abraço.

Su, bem-vinda e obrigado pela tua opinião.

Ginger, eu me adaptaria bem à terra dos feios. Bj

Johnny disse...

Melhor do que viverem na ignorância, o ideal - para mim - seria que eles conseguissem absorver a informação e terem maturidade suficiente para ignorar essa informação ou, pelo menos evitar que essa informação os contaminasse. isso é que seria a verdadeira inteligência. A beleza faz parte da vida, ainda que se distinga em natural/artificial exterior/interior, e temos de viver com ela, não como uma chaga, mas como uma mais-valia, porque senão começamos a ostracizar o que é belo apenas pelo facto de o ser e isso... é feio.

By Me disse...

ORIGINAL,PERTINENTE...UMA LIÇÃO ...UMA BELEZA...SOU APOLOGISTA DA MUDANÇA MAS SEM EXCESSOS...MAS O PROGRESSO QUANDO SE INSTALA...É COMPLICADO SABER AS SUAS CONSEQUÊNCIAS...
A INVEJA PODE SER DESTRUTIVA...E CORROSIVA...PODE SER MUITO PERIGOSA...

GOSTEI MUITO DE VIR CÁ

BOM ANO

Catsone disse...

Johnny, concordo contigo, mas infelizmente a inteligência não abunda nos nossos dias. Acho que o nosso conceito de beleza é moldado mesmo contra a nossa vontade. O que é belo para mim, pode não o ser para ti, é certo, mas vamos ver e temos mais ou menos os mesmos gostos e, penso, ter a ver com anos e anos de ideias/ideais plantados nas nossas mentes de forma insidiosa e que agora aceitamos como nosso "ideal de beleza". Não é fácil ficar imune a isso...
Abraço

Pedrasnuas, seja bem-vinda a este estaminé e obrigado pela tua opinião. *

Carina disse...

Ora que há que referir que as tuas contribuições para a fábrica das letras são magnificas e que, como quase todas as coisas que escrever,gosto muito de as ler!

E também que foi a partir daqui que conheci a fábrica e decidi dar o meu contributo!
Cada um faz o que pode e a mais não é obrigado ;)

Beijo!*

Catsone disse...

Ó cara Ana, até fico encabulado ;)

Carlos Albuquerque disse...

Andamos quase sempre por aí com as vidraças dos olhos embaciadas! Este "A terra dos feios" é um conto mágico, limpador de brumas...
Gostei de o ler.
A nossa Fábrica pode congratular-se por ter quem escreva assim.
--
PS - obrigado pelos votos deixados no meu blog.

El Matador disse...

Boa estória. A evolução traz destas coisas como a inveja e a ganancia, é um preço que se paga.

mz disse...

A evolução do homem sempre esteve ligada à aparência física.
É bom cuidarmos de nós, termos um pouquinho de vaidade nunca fez mal a ninguém.
Cuidar da nossa beleza exterior sem descurar a outra...
aquela que faz de nós um ser sociável e tolerante perante uma sociedade cada vez mais materialista.

Gostei da ideia dos feios :)

bjinhos

Catsone disse...

Carlos, seja bem-vindo e muito obrigado pela tua opinião. Um gajo assim fica corado ;)

MZ, bem-vinda e obrigado.

Ceres disse...

Mais uma excelente contribuição!
Gostei imenso deste texto :))

Catsone disse...

Matador, é pena que para evoluir haja esse preço a pagar.

Ceres, obrigado ;)