13 outubro 2010

Lenda


Para o desafio "O cheiro da chuva" da Fábrica de Letras:


Lenda

Há muito que não chovia no sertão. Nem uma pinga d'água despejada por São Pedro nos últimos 15 anos.

Naquelas bandas poucos insistiam em cavar terras que há muito deixaram de fazer nascer o que quer que fosse.
O rio sem nome, que cortava a cidade, era um fóssil que deixara de alimentar poços, hortas e expectativas.
A única água do lugar provinha das gotas de suor das gentes que teimavam em cultivar a única coisa verde que ainda existia: a esperança.

Diziam ser maldição adquirida durante as últimas chuvas. Naquela altura chuvadas abundantes quase apagaram a pequena cidade do mapa. Muitos pediram pelo fim da calamidade: oraram, fizeram promessas, imploraram aos céus para que as águas cessassem e elas cessaram… para sempre.

Francisco apareceu nessa enchente. Vinha embrulhado, em tecidos toscos e rasgados, dentro de uma caixa de madeira usada para transportar frutas. Ninguém nunca soube de onde viera o menino e muitos imputavam nele parte das culpas.
Foi adoptado por um casal jovem, ainda sem filhos. Deram-lhe guarida quando todos o queriam devolver às águas do agónico rio da cidade. Resolveram criá-lo, na esperança de que Francisco pudesse ser a cura em vez da doença.

Francisco carregara o fardo de maldito ao longo da infância. Se vissem nuvens carregadas ao longe e as mesmas desaparecessem, Francisco já sabia o que lhe aconteceria e corria para a casa de barro dos pais.
As outras crianças ostracizavam-no. Desejou, por muitas vezes, desaparecer tão misteriosamente como aparecera.

Então, numa copiosa tarde soalheira de Dezembro, uma família retirante chegou à cidade. A família Silva era composta pelo casal e seus 6 filhos. Caminhavam há semanas pelas terras secas do sertão e procuravam descansar por uns tempos no lugarejo. Diziam estar de passagem e que a estadia seria breve.

Nessa trupe nómada morava Etelvina, uma menina de olhos e cabelos negros, pele queimada do sol, que conquistou o triste coração de Francisco.

Os dois conversavam durante horas, sentados às margens do rio seco, observando os montes que cresciam no horizonte longínquo.
Ela falava-lhe das paisagens agrestes que conhecera, do calor abrasador do dia e do paradoxal frio da noite, da fome, da sede, da solidão de uma viagem sem rumo ou destino. Falava-lhe do passado e imaginava um futuro um pouco melhor.
Francisco ouvia-a, apaixonado. Sentia uma comichão estranha que lhe percorria o físico sempre que ela lhe lançava o olhar. Sorvia-lhe cada palavra e saciava o espírito com o seu riso.
Nunca se sentira assim. Por momentos esquecera de onde estava. No seu campo visual não cabia nada que não fosse aquela menina, qual imagem de santa aos olhos do pagador de promessas.
Sentia o corpo a responder de formas estranhas: taquicardia, polipneia, visão turva, mania e uma sensação avassaladora de plenitude. Com Etelvina tudo podia, tudo conquistava, tudo era melhor, não era mais maldito.
Na flor dos seus 15 anos, Francisco sentia-se cada vez mais viciado e precisado da sua dose diária de amor...

Tal como prometido, a família levantou ferro e partiu pouco tempo depois. Foi-se embora ainda o sol era um esboço no céu limpo do sertão.
Francisco, que sonhava com Etelvina, não estava preparado para esse pesadelo.

Ao saber da partida inesperada dos Silva, também Francisco partiu. Fugiu para o isolamento em direcção aos montes, seguindo o rasto do extinto rio e deixando para trás a maldição que residia naquele lugar.


As pessoas vieram a correr. Todas gritavam, agitadas, em estado de ansiedade descontrolada. Anunciavam que o rio voltara a correr, que se fizera um milagre: o rio voltara a nascer sem sinal de pinga do céu, sem o vento e o cheiro característicos da chuva.

Declararam ser um rio de água salgada e baptizaram-no de Rio São Francisco.



Luís Fernandes Lisboa ®

14 comentários:

Francisco José Rito disse...

Eu sempre soube que lá no fundo, eras um romântico :-)

Bonito conto

Abraços

Sahaisis disse...

Bonito ;)

meldevespas disse...

tao bonito. o amor como força motriz da esperança ;D


ja agora.....o que ´´e polipneia?
...

Catsone disse...

Francisco, e diz lá se não acertei no nome da personagem? ;)
abraço

Sahaisis, obrigadinho
bj

Mel, polipneia é um aumento dos ciclos respiratóuios, ou seja, respiração mais rápida.
bj

Johnny disse...

para além de bem escritos, estes textos têm sempre boas premissas e boas ideias...

gosto do toque pessoal presente nas condições médicas :)

chica disse...

Puxa, que coisa mais linda,Catsone!

Bela inspiração!Adorei!abraços,tudo de bom e um lindo fim de semana,chica

Otário Tevez disse...

adorei a imagem ali do cimo do blog... li parte do seu texto, tanto que estou com pouco tempo livre para mais mas prometo voltar!

eu também participei,
saudações otárias!

El Matador disse...

Gostei muito ó Catsone.

É o que ainda nos safa, vivermos num pais cheio de poetas.

Catsone disse...

Johnny, obrigado, friend. É bom saber que há quem goste.
Abraço.

Chica, obrigado. Que tenhas um bom fim-de-semana também.
bj

Otário, que parte leste? lol
Vou dar uma vista d'olhos na tua participação, mas são tantas que ainda vai demorar...
Abraço.

Matador, não achas que este país melhorava se dessem mais ouvidos a quem escreve do que a quem governa?
Abraço.

Anónimo disse...

gostei muito (:

bj

Catsone disse...

Missy, bem-vinda e obrigado!

João Roque disse...

Perante um tema não muito fácil, um excelente desenvolvimento.
Parabéns.

Catsone disse...

Pinguim, tks amigo!

su disse...

adorei o conto mas... o pobre francisco, que passou terrores durante toda a sua curta vida, não poderia ter ficado com a etelvina?

a lenda ficava bem mais bonitinha...