05 junho 2011

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Em resposta ao desafio "os problemas resolvem-se à chapada" da Fábrica de Letras.








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A professora já não suportava mais. Aquela era a pior turma que alguma vez tivera a seu cargo. Nos seus longos anos de experiência nunca vira nada assim e a sua já pouca paciência esgotava-se a cada dia.
Eles gritavam, eles brigavam, mandavam papeis, borrachas e bocas uns aos outros.
Já tinha sido insultada, humilhada e desrespeitada de todas as formas e feitios por aqueles pequenos estafermos. Já não os suportava e, vindo de alguém que os devia "adoptar" como aprendizes, isso era terrível e inaceitável.

Por causa daqueles alunos iniciara uma incursão no mundo da piscofármacologia. Sentia-se nervosa só de pensar em pisar a sala de aula; as sextas-feiras eram de alívio e os domingos à tarde de terror.
Decidira acabar com este sofrimento. Não merecia essa cruz. Ia rebelar-se!

Chegou à sala naquela segunda-feira de manhã e viu o que via todos os dias: algazarra. Uns gritavam, outros corriam, mais um em cima da sua secretária e uma que escrevia no quadro enquanto o colega a usava como alvo para as suas bolas de papel. Nem notaram a sua entrada.


Escostou-se, invisível, à um canto, encheu-se de coragem e...
- CALEM-SE! TODOS SENTADOS! - a plenos pulmões, vindo do mais fundo, do mais recôndido e escondido canto escuro do seu espírito.

A sala de aula congelou-se. Todos ficaram imóveis como se alguém parasse o tempo. Espantados, viram no semblante da, outrora paciente professora, algo nunca antes observado. Algo estranho, novo e assustador. Um frio lhes correu espinha acima.

- SENTADOS, JÁ DISSE! NÃO VOLTO A REPETIR!

A pequena trupe então sentou-se. Expectantes, aguardavam o que dali viria.

A professora viu-se num impasse. Agora não poderia voltar atrás. Iniciou uma viagem sem retorno; uma batalha onde não poderia ceder um milímetro. Pensava no que fazer já que alguns insistiam em desafiá-la; riam-se baixinho, nervosos mas provocadores.
Decidiu-se por dar-lhes uma lição que jamais esqueceriam. Lição essa que pagaria com juros tudo o que lhe haviam feito passar até então. Ficariam "quites". Correria riscos, mas agora encontrava-se no ponto de não retorno.

Escreveu "2+2= " no quadro negro. Olhou para a turma e chamou: Pedro.

Não era aleatória a escolha pelo Pedrinho. O Pedrinho era o maestro daquela sinfonia dos infernos. Era o general, o padrinho, o pastor daquele rebanho de pequenas "Maria-vai-com-as-outras".

O Pedrinho era filho único. Gostava de toda a atenção que lhe pudessem dispensar. Gostava de ser o centro do universo e tudo fazia para que o considerassem assim.
Não era um rapaz brilhante, muito pelo contrário, e por isso mesmo chumbara alguns anos. Dessa forma era o maioral da turma, o mais velho, o mais alto e forte... e aproveitava-se disso. Não havia orelha na turma que já não tivesse sido aquecida pela mão do Pedrinho, nem rabo que não tivesse a marca de uma das suas sapatilhas.
Era um arruaceiro, um desordeiro e um candidato a futuro delinquente.
O Pedrinho era o alvo (e o exemplo) perfeito para a lição das lições.

- Pedro, anda cá ao quadro e resolve esta conta.
O menino levantou-se e desfilou desdém entre o corredor de carteiras. Sorriu para os outros, confiante, com a arrogância de quem já conta com a vitória antes do jogo acabar.
A professora entregou um pedaço de giz ao rapaz e insistiu no pedido.
- "Stôra", não vou resolver - diz matreiro.
- Ai não? Porquê? - pergunta a professora.
- Porque não sei.
- Não sabes? Como não? Claro que sabes.
- Ó "stôra", não sei nem quero saber! - e vira as costas à educadora.
Foi então que sentiu a mão quente e húmida da professora a agarrar-lhe o braço.
- Não te mandei sentar. Tu hoje sais daqui a saber matemática, meu amigo. Olha aqui, que número é esse?
- Não sei, nem quero saber, já disse e...
- É UM "2"! - e conta "1" e "2" enquanto desfere dois valentes estalos nas bochechas rosadas do rufia.

O Pedro estremece. Não estava à espera nem sabia de onde vinha aquela mão cheia de dedos.
A assistir a cena, a turma toda em suspensão, aturdida, boquiaberta, a beliscar-se...

- AGORA CONTA COMIGO: 3 E 4! - mais dois tabefes na cara do puto - ENTÃO QUANTOS SÃO 2+2, HÃ? DIZ LÁ, RAPAZ, DIZ!!!
- São 4, "stôra", 4!!! - lutando para não chorar à frente dos colegas (luta inglória).
- Vês? Vês como sabes? - diz calma e ternamente a professora - meus parabéns, Pedro. Pronto, agora vai, meu rapaz, vai-te lá sentar.

A professora lutava para esconder o tremor das mãos e a ansiedade que lhe inundava a alma.

- Alguém mais tem dúvidas? -perguntou à turma com um sorriso doce nos lábios - algum de vocês quer fazer alguma pergunta? Sabem todos quantos são 2+2?
- SIM, Sra"stôra", são 4 ! - responderam em uníssono.
- Muito bem! Então assim sendo, abram os vossos livros na página 26 e ...

Desde então, nunca se vira naquela escola turma tão trabalhadora, organizada e orgulhosa da sua mestra e, ainda na semana passada, ficou-se a saber que o Pedro acabara a licenciatura em Engenharia com distinção.
Já diriam os sábios populares: "nada como um bom estímulo".

19 comentários:

su disse...

por mais que sejamos contra a violência, nada como um bom par de estalos para endireitar paus que insistem em crescer tortos. e é uma pena. os miúdos de agora não souberam aproveitar a mudança que se deu entre os tempos dos avós e os tempos dos pais... agora, o caos reina. venha de lá a menina dos cinco olhos. porque eles merecem.

[sei que não é politicamente correcto falar assim, mas paciência. há dias assim...]

um beijo :)

Sahaisis disse...

recordo as vezes em que fui amarrada à cadeira pela minha estimada professora (glup)

João Roque disse...

Faz-me lembrar os meus tempos de professor; tive algumas reacções parecidas com esta que contas e das quais não me arrependo, mas suficientes para me porem um processo disciplinar às costas...

meldevespas disse...

Sempre muito actual este tema eheheh
na sala da minha mais nova ha um miudito, assim do genero do "teu" Pedro, alto, mais forte que todos os outros apesar de ser da mesma idade. Desde o infantario (e ja vao no 3º ano!) que o puto tem feito as maiores heresias desde espetar bicos de lapis na cabeça de colegas, ate apertar o pescoço a outros, e tentar espetar o bico de uma tesoura das costas de um outro, e a ultima, escrever repetidamente no caderno da escola "a professora ´´e uma vaca"... ora diz-me la que nao merece/precisa de um tratamento desses? mazeobvio!
Beijo

Ricardo Fabião disse...

E ainda há autores que enxergam apenas um lado nos temas propostos.
Eis uma possibilidade interessante para concordar com a frase-chave lançada pela Fábrica.
Não sou violento, mas esta história vai ficar ecoando no juízo como ocorre aos sonhos de consumo; afinal, sou professor e sei o caminho disto.

Gostei muito.

Abraço.
Ricardo

soninha disse...

Que maravilha de texto!Delicioso demais de se ler..rs.Já lecionei uma turma igualzinha a esta e um dia saí no meio de uma aula para nunca mais voltar..rs.Quem sabe se eu tivesse agido assim teria sido melhor?(rs).Muito show a sua maneira de escrever.abçs e votos de paz.

Otário Tevez disse...

muita boa participação,
saudações e parabéns!

El Matador disse...

Nem mais. Um bom exemplo de um problema resolvido à chapada.

:) Grande Catso

Cirrus disse...

Se optássemos por esse caminho, e reforço o SE, teríamos tantos a quem dar chapadas! Crianças? Sim, com certeza. Mas e os adultos? Os pais, que parece que nunca andaram na escola? Os avós, que parece que não criaram os pais? Os professores, que também são pais? Ou não? Os professores não podem ter filhos?!

Acho muito bem que se resolva à chapada. Não se esqueçam é que todos nós, aparentemente, precisamos de dois valentes pares delas. Tudo vai bem no reino dos outros, eu não, eu não... Já mete nojo ninguém fazer nada por termos chegado a estado de coisas - e, no entanto, aqui somos chegados - sem culpas de ninguém. Enxerguem-se! TODOS temos culpas!

Catsone disse...

Caríssimos, obrigado pelos comentários. Gostaria, no entanto, salientar que, com este texto, apenas tive a intenção de criar algo à volta do tema. Não apoio qualquer tipo de violência com crianças (mesmo as mal comportadas). Ainda assim, devo confessar que miúdos como o Pedro (e são muitos) deveriam ser educados pelos seus próprios pais, já que não encaro a escola com essa função (os professores já tem de sobra com o que se preocupar!).

Catsone disse...

Cirrus, amigo, eu devia levar não apenas um par delas. Concocordo que na nossa sociedade, a levar, levavam todos a eito!
E reforço que apenas quiz criar um trocadilho com o "resolver os problemas à chapada"...
Prta-te

chica disse...

Foste muito bem na elaboração desse texto, cumprindo o tema sugerido...

abraços,tudo de bom,chica

Cirrus disse...

Cat, perdoa-me o desabafo. Mas da maneira que certas pessoas falam, parece que moram num país que não é este. Ou que não são portugueses, ou não são pais, nem contribuintes, nem devedores, nem nada. São santos. Talvez por isso é que este país está como está. Pedimos responsabilidades aos políticos. E a nós, pedimos?

mz disse...

Nos dias de hoje, era um processo disciplinar à professora. Mas houve tempos em que assim era... eu ainda levei uma réguada que me ardeu bem nas mãos... enfim...

Atitude é muito importante na sala de aula!

Briseis disse...

Falhou... A prof. falhou muito. Se foram precisos 4 bananos é porque ela não tinha resolução suficiente. Porque isto, quando a tampa salta, basta um calduço bem assente para deixar o meia-leca com a mania das rebeldias KO. =)

Roselia Bezerra disse...

Olá,
"Infelizmente" à chapada, nunca!!!
Fui professora (sou aposentada) e nunca usei de violência... mas vc tem uma visão da atualidade em seu texto... é o que acontece mesmo (turma insubordinada e sem respeito algum pelo mestre)...
Não sei o que seria de mim se tivesse que lecionar hoje em dia com o que vejo por aí...
Caio no fatal: "em meu tempo"... era assim que se agia... porém nunca precisei tomar tapas nem beliscões nem palmatórias... mas "é de pequeno que se torce o pepino"...
Abraços fraternais de paz

Eva Gonçalves disse...

Ó pá, passou-me o teu texto, ainda não o tinha lido, rrsss sorry. Entrei na Fábrica à procura do tema de Julho e vi que havia textos por ler!
O texto está bem escrito, e consegue prender a atenção na expectativa do que acontece. :) Nunca levei eu, mas vi muita gente a apanhar num colégio de freiras/profs sem paciência nenhuma! Mas não havia indisciplina nenhuma... :) beijinhos

Johnny disse...

Eu... foi 4 ou 5... MAS reguadas... uma por cada erro ortográfico... nunca mais passei o limite de 4. Também foi um bom estímulo. Só não me tornei Engenheiro.

Pseudo disse...

Sou professora há 16 anos e este ano saltou-me a tampa pela primeira vez, assim mesmo, a ponto de mandar um bufardo na cara do rapaz. Remédio santo. A turma afastou-se de mim e dele, pois ninguém sabia se o rapaz ira responder na mesma moeda. Não respondeu. Mas "doeu-lhe".
Arrependi-me passados 2 segundos, fiquei nervosíssima, mas a partir dessa aula de Março, não tive mais menino a chatear-me.