02 junho 2010

O homem que tinha dinheiro

Para o desafio: "Estava vazio..." da Fábrica de Letras



"O homem que tinha dinheiro"



O homem que tinha dinheiro tinha tudo. Tinha uma bela casa, tinha bons carros, viajava, comia do bom e bebia do melhor.
Vivia à grande e, naquela semana, era “casado” com uma francesa mais jovem que ele… bem mais jovem que ele.
O homem que tinha dinheiro tinha um nome enorme e que acabava em números romanos. Tinha herança de família. Vivia do império conquistado pelos antecedentes familiares.
Desistiu de estudar e não “tirou” nenhum curso, mas era chamado de “Dr.”. Nunca foi à tropa mas no Brasil era “Capitão”. O facto de ter recheio financeiro fazia-o ser respeitado e idolatrado pelos menos afortunados. Ele era admirado mas ninguém sabia porquê.
Não era músico mas ia à opera, no entanto, nenhuma lhe arrancava lágrimas. Falava de livros que não leu e de peças que não viu, era um erudito sem nunca o ter sido.
Não cozinhava, não limpava, não sabia fazer nada, sua melhor qualidade era gastar e nisso era profissional. Não investia em nada que trouxesse retorno e o dinheiro esvaía-se, mas esse era infinito, tal como a sua ignorância. Não tinha ciúmes do seu dinheiro e compartilhava-o como os “amigos” de cada ocasião.
Não mexia uma palha. Não corria mas ia às olimpíadas; não jogava ténis mas estava em Roland Garros, na primeira fila com um borsalino branco; não pedalava, não nadava… não lutava.
À sua amante francesa, seguiu-se uma brasileira, depois uma tailandesa e uma africana (em simultâneo) e, depois, muitas outras das mais variadas formas, tamanhos, “cores e sabores”. Dizia não enjeitar nenhuma experiência e, assim, experimentava todas. Elas sempre lhe ficavam com um pouco da matéria já que o espírito não lhes tinha nada para oferecer.
Ia passando os anos assim, de mulher em mulher, de lugar em lugar, e não se agarrava à nada. Tinha muito dinheiro, mas apenas conseguia ombros para chorar ou colos onde se deitar desde que aceitassem Visa®.

O homem que tinha dinheiro ria-se muito e era feliz… ou, pelo menos, parecia.

Mas mesmo ele havia de morrer e o homem que tinha dinheiro morreu como os outros: fechou os olhos e susteve a respiração por toda a eternidade. Morreu jovem, mais cedo do que pretendia, deixando o dinheiro, seu único e verdadeiro amor, para trás. Esse entregou-se a outros que seguiram os passos do antigo “amante”.

O homem que tinha dinheiro foi deitado num caixão negro e foi morar no jazigo da família, situado num canto soturno do cemitério da sua cidade natal. Não houve homenagens, não houve salva de tiros ou boas lembranças da sua passagem, e o cortejo fúnebre estava vazio… tal e qual como fora a sua vida.

Luís Fernandes Lisboa ®

22 comentários:

Poetic Girl disse...

Fantástico conto, de prender do início ao fim... teve uma morte tão vazia quanto a sua vida, quanta gente anda por este mundo e na sua hora final, na hora de todas as homenagens se encontra vazia da presença dos outros? Não deixam recordações, não deixam saudades, vidas vazias... adorei! bjs

meldevespas disse...

Parece que os antigos tinham mesmo razão quando diziam que ohomem, seja lá quem for, de onde vier, o que quer que tenha, se iguala na morte. Mas ainda assim, há quem deixe saudades, e quem não as deixe. O dinheiro, esse fica sempre. Como dizia um padre amigo "ontem morreu um homem rico, e vejam bem que boa alma, não quis levar dinheiro nenhum"
Gostei muito deste conto, como por norma gosto muito dos teus escritos.
Beijo

Sahaisis disse...

so dark

Catsone disse...

Poetic, obrigado. Muita gente vive assim, aliás, pensei em alguém que conheço quando escrevia: não há melhor inspiração. bj

Mel, esse teu amigo teve uma tirada sábia. Por vezes penso na inutilidade das "coisas" e a falta de interesse pelo que realmente é importante: o amor, a amizade, a família... essas não têm preço e, afinal, não custam nada. bj

Sahaisis, combina com o meu estado de espírito dos últimos tempos ;)
bj

Ricardo Fabião disse...

Essa vida 'comprada' não há de ser sentida como vida de fato. É como se a tivéssemos tirado de uma prateleira de supermercados para usá-la conforme nossos anseios.
Não ocorre assim. Vida requer mais profundidade, dá em outros propósitos.

Gostei do estilo.
Cativou-me, sobretudo, a irreverência da narrativa.

Muito bom.

Abraço.
Ricardo

Unknown disse...

Excelente crítica diante deste sistema capitalista que devora o mundo e se apropria de pessoas de alma vazia - como este homem riquíssimo, porém, sem valores e, portanto, anônimo.

Beijo,
Ane

El Matador disse...

Hoje em dia a concepção de felicidade das pessoas está directamente relacionada com a quantidade de "coisas" que elas possuem. No fim nada interessa se não construíste pontes. A morte nivela tudo.

Esqueceu-se de alugar antecipadamente umas carpideiras.

muito bom.

Natália Augusto disse...

Narrativa magistral e que ilustra na perfeição o tema de Junho proposto pela Fábrica das Letras.
De facto, o dinheiro não é tudo. neste caso de nada valeu ao protagonista que foi egoísta e um esbanjador.
Não sinto pena de pessoas assim, porque as há por aí.

;)

chica disse...

Maravilhosa participação.Um enredo fantástico!abraços,chica

By Me disse...

BOA PARTICIPAÇÃO...O HOMEM QUE TINHA TUDO E NÃO TINHA RIGOROSAMENTE NADA...E QUANDO SE MORRE ENVIADO PARA A TERRA OU PARA UM JAZIGO...É MORTE NA MESMA...EM PÓ SE HÁ-DE TORNAR ...

GOSTEI MUITO DO TEU COMENTÁRIO...

GOSTEI IGUALMENTE DE LER O TEU TEXTO.

Catsone disse...

Ricardo, "a matéria é passageira", é um dos lemas da minha vida ;)
Abraço

Ane, não sou comunista, ok? lol
Mas a verdade é que, infelizmente, as pessoas (muitas) ainda não conseguem perceber quando as coisas que têm são suficientes e continuam a querer mais...
Escapa-lhes as coisas que não têm preço.
Bj

Matador, com este "nick", não foste tu que o mataste, pois não? :D
Por cá no burgo, vejo muitos destes (in)felizes.
Abraço

Natalia, bem vinda à esta tasca. Eu não tenho pena, tenho desprezo, tal e qual eles têm pelos outros. Não são merecedores de mais nada.
bj

Chica, obrigado e um bj.

Pedras, obrigado ;)

mz disse...

O retrato de uma vida completamente vazia onde o mais importante era o gozo imediato do momento... uma procura constante de formas cores e sabores que ele nem soube saborear convenientemente.


Mas olha que o final arrepiou-me... brrrrrr!

bjs

Lala disse...

pobre menino rico! tão cheio de nada e vazio de tudo.
Excelente narrativa, Catsone!!

Beijinhos**

Helga Piçarra disse...

Creio que na sua ignorância e desconhecimento dos verdadeiros valores da vida - ofuscados pelo dinheiro - o homem que tinha tudo foi feliz à sua maneira. Morreu sozinho, mas quantos de nós, sem uma ínfima parte do que ele teve, não morre igualmente sozinho.

Um beijinho

Catsone disse...

MZ, é isso, o gozo momentâneo das coisas pensando que o futuro não interessa. Bj

Lala, obrigado ;) bj

Helga, são igualmente vazias essas vidas. Acho que o que nos preenche são coisas palpáveis apenas pelo espírito ;)
Bj

Pronúncia disse...

Um retrato cru, mas infelizmente cada vez mais verdadeiro.

Ainda mais que o post (que gostei, pela frieza, mas verdade que encerra) gostei especialmente da escolha musical para o ilustrar (mas a minha relação com a música é suspeita :))

"To much walkin, shoes worn thin
To much trippin and my soulds worn thin
Time to catch a ride, it leaves today, her name is what it means
To much walkin, shoes worn thin"

Bom (resto) de fim de semana! :)

Johnny disse...

E somos todos assim, um pouco suspeitos na relação com a vida, com o dinheiro e as aparências... resta-nos combater essas tendências e de sermos menos maus que os outros... menos vazios, para termos funerais mais cheios... ainda que isso tenha um significado, também ele, vazio.

Boa escolha musical, claro.

Catsone disse...

Pronúncia, que honra ter vossa senhoria por esta tasca ;) Fico agradado porque parece teres óptimos gostos musicais. Bj

Jonnhy, concordo que o número de pessoas num funeral é irrelevante, tive essa experiência há pouco tempo, infelizmente. O que quiz mostrar com o texto é que a matéria não nos preenche o nosso coração, ou pelo menos não devia.
Já nem digo nada, friend.
Abraço.

Pronúncia disse...

O prazer é todo meu! E não é "senhoria" é plebe, mesmo... ;)

João Roque disse...

Impecável!
O "nada" elevado ao superlativo para depois se transformar no nada que realmente nunca deixou de ser...

Louise disse...

E nada mais a dizer. Sem dúvida nenhuma que a riqueza da vida está no conhecimento, nos amigos, numa alma-gémea. Algo que o Homem que tinha dinheiro não teve a felicidade de ter.

Excelente conto.

Catsone disse...

Pinguim, taí um óptimo ponto de vista, amigo.
Abraço

Louise, bem vinda a este recanto. O homem que tinha dinheiro, tinha apenas dinheiro e pouco mais...
Bj