24 maio 2008

O Homem Cliché

Manuel estava destinado desde o início. Seria comum e vulgar, a começar pelo nome. Manuéis existem muitos, ele era mais um.
Manuel cresceu normalmente, tornando-se num adulto baixo e atarracado. Foi um aluno mal comportado e quase terminou a 4ª classe. Não tinha educação. Não tinha modos. Comia como um porco. Seu curriculum completava-se com um português mal falado e a carta de pesados que “tirou” aos 21 anos.
À medida que os anos passaram, observou-se um crescimento acelerado do abdómen e o simultâneo desaparecimento, também em grande ritmo, do cabelo. Por baixo dos orifícios nasais uma vasta floresta pilosa estendeu-se por cima do lábio superior. Esta metamorfose tornou-o num português de “gema”.
Aos fins-de-semana, saía de casa, na baixa de Lisboa, para ver os jogos do Benfica; às vezes voltava animado por uma vitória, outras vezes, descarregava as frustrações na mulher, Maria. Ela também “torcia” pelo SLB.
Não exercia seu direito de voto mas criticava o governo.
Não trabalhava, não descontava, mas queria subsídios.
Tinha uma tatuagem, no braço esquerdo, dos tempos da tropa. Gostava de contar histórias de uma guerra que não conheceu, enquanto jogava sueca ou fumava com os amigos. Bebia o que houvesse e descarregava as frustrações na sua pobre Maria.
Teve duas filhas (Maria da Conceição e Maria de Fátima) e um filho (António Manuel). Elas teriam de ir castas para o altar, ele perdeu a virgindade com senhoras, de pouca confiança, que trabalhavam no Monsanto.
As filhas casaram-se com Manuéis. Como déjà-vu viveram em casa a vida que viam em casa dos pais. Recebiam as frustrações dos maridos em fins-de-semana de derrotas ou nos fins de festas bem regadas.
O filho casou-se com Maria Amélia e tinha uma amante chamada Ana Maria. A primeira era o alvo de frustrações, a segunda recebia o pouco amor que restava no indivíduo.
Manuel foi avô por 9 vezes, e pouco interesse disponibilizou à essa “encargo “ familiar.
Teve um cancro no pulmão com metástases hepáticas e cuspia direitos de doente que nunca votou e poucos impostos pagou, esquivando-se como pôde aos deveres.
Viveu 63 anos, 2 meses e 3 dias. Morreu decrépito. Teve um funeral com meia dúzia de amigos de olhos postos na, agora viúva, D. Maria, e nos possíveis bens que ainda pudessem existir. Foi a enterrar num dia de sol radiante, em pleno Janeiro; ninguém ou nada se importou com a sua partida.
Seus restos mortais perderam-se num recanto quase indecifrável de um cemitério qualquer da capital.
Manuel passou por cá e ninguém o viu, e até nisso foi vulgar.

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