A cigarra e a formiga
Na floresta encantada, andava feliz a cigarra a tocar o seu pífaro. O sol do verão ainda lhe
dava a energia necessária para saltar por todo o lado embalada pelo som
estridente do seu instrumento. Apesar disso, já algo cansada de tanta alegria e divertimento, a cigarra
aterrou num bonito cogumelo, que nascera da humidade de uma chuvada estival, e ali ficou a descansar.
Enquanto recarregava as baterias ficou a observar a azáfama que
acontecia num formigueiro um pouco mais além. Via formigas a trabalhar
intensamente e, intrigada, pensou em dar um salto para conversar com uma delas.
“Olá, amiga. Tudo bem consigo?” – perguntou a cigarra.
“Olá. Desculpe, mas não tenho tempo para conversas” –
respondeu a formiga de forma ofegante.
“Êlá. Tenha calma, amiguinha, ou ainda tem um piripaque.
Descanse por uns segundos e fale comigo” – insistiu a cigarra.
“Já lhe disse que não posso. Vem aí o Outono e temos de
trabalhar para armazenar comida para o inverno!”.
“É por isso que trabalham tanto?”
“Claro. Porquê? Achava que era por diversão? A senhora anda praí toda contente, veja lá se chega até ao próximo verão!”.
“Credo! Não agoure. Há muita comida pela floresta. Veja a quantidade de
folhas nas árvores e plantas no chão. Vai ver que esse trabalho todo não é
necessário. Chega de stress, cara amiga, toca a cantar e a dançar!”
E a cigarra, dum salto, desapareceu no meio da mata deixando para trás a
formiga, estupefacta com tanta displicência.
O Outono chegou mas passou num ápice para dar lugar a um dos Invernos mais intensos e rigorosos dos últimos tempos.
Quando a primavera chegou, as formigas voltaram a dar o ar
da sua graça e começaram a aventurar-se para fora do formigueiro. No bosque ouviam-se os pássaros e já se sentiam os
diferentes odores das flores. Não obstante, da cigarra nenhum sinal.
A primavera deu lugar ao verão mas o silêncio da cigarra mantinha-se. A formiga começou a ficar preocupada e a
culpar-se da nebulosa profecia que fizera sobre o futuro da cigarra. Começou, por isso, a indagar os outros insectos do bosque à procura de explicações para o misterioso desaparecimento da cigarra.
Falou com as moscas-da-fruta que nada sabiam porque ainda
não eram nascidas no verão passado e, portanto, não conheciam a cigarra. Tentou com o escaravelho-do-estrume que disse não fazer ideia porque seu olfacto, visão e audição andavam, ultimamente, numa verdadeira bosta. Conversou com o Louva-a-Deus que desconhecia qualquer
acontecimento mas que lhe garantiu uma oração para que a formiga encontrasse a
amiga. Ainda perguntou a um mosquito que, para além de não ter qualquer
informação útil, revelou ser uma verdadeira melga.
Por fim, visitou a colmeia mais próxima. Lá conversou com
algumas abelhas. Elas lhe contaram o que sabiam. Tinham ouvido um “zum-zum”
qualquer sobre a história de uma malfadada cigarra que tinha sofrido um grave
acidente no Outono passado.
“O que aconteceu?” – perguntou, angustiada, a pequena
formiga.
“Bem, parece que a cigarra estava montada numa folha de uma
caducifólia em Outubro” – disse uma das abelhas – “ e, inesperadamente, terá
caído da planta juntamente com a folha, partindo uma perna no embate com o chão”.
“Mas uma perna partida não é suficiente para matar uma
cigarra” – disse, intrigada, a formiga.
“Pois não. Tens toda a razão. No entanto, parece que a
cigarra ficou no chão durante algum tempo à espera do INEM, já que a ambulância
estava parada por falta de profissionais. Quando finalmente vieram buscá-la,
levaram-na para o hospital mais próximo. Chegando lá viram que as urgência
estavam fechadas pois este serviço tinha sido concentrado noutro hospital
alguns kms mais à frente. Nesse outro hospital foi confrontada com a taxa
moderadora; como a cigarra não trabalhava, não tinha dinheiro para pagar a taxa
e teve de deixar o pífaro como caução. No consultório foi observada por um
médico duma empresa de prestação de serviços. Esse médico, pouco motivado pelos
4€/hora e que mal falava português, pediu-lhe um Rx da perna que, apesar de demonstrar
uma fractura evidente, foi mal lido. A cigarra teve alta medicada apenas com um
analgésico qualquer. Com o decorrer do tempo a
situação agravou-se e a perna da cigarra começou a ficar negra num claro sinal
de gangrena. Por fim, durante o inverno, a tua amiga pereceu por
complicações devida a uma sépsis.”
“Jesus, que fim triste!” – disse a formiga, claramente
chocada com o desfecho da situação.
E, lá ao fundo, uma abelha conhecida pelo seu humor negro e em
jeito de provocação, manda uma chalaça:
“Pois é, a preguiçosa e obesa cigarra morreu ao cair da
folha!”
11 comentários:
"Esse médico, pouco motivado pelos 4€/hora e que mal falava português, pediu-lhe um Rx da perna que, apesar de demonstrar uma fractura evidente, foi mal lido. A cigarra teve alta medicada apenas com um analgésico genérico que lhe foi trocado na farmácia por um de uma marca indiana desconhecida. "
É o futuro (próximo) tenho a certeza..
acho que mesmo antes de a cigarra chegar ao hospital (a ambulância fez a volta maior para atestar nas bombas do Intermarché, que é mais barato o combustível), já a formiga tinha batido a bota!!!
Essa de ter de deixar o pífaro como caução fez-me rir.
Na volta está o hospital repleto de pífaros e a gerência lá terá de fazer um leilão a preço de saldo. Mas como as cigarras não têm dinheiro e as formigas não se metem nesse tipo de negócio, fica o hospital com a remessa de pífaros sem utilidade nenhuma.
:)
Sahaisis, mais próximo do que imaginamos. Embora não fosse esse o tema que queria explorar, não consegui evitar :D
nAnonima,o gasóleo dessas bombas entopem as bombas injectoras!
Mz, pífaros, dentes d'ouro, calças... o que a malta tiver para dar. Depois fazem leilões para livrarem-se dessa porcaria toda. Lol.
Eu sei! :)
Muito bom. Excelente adaptação. Não foi preciso muito esforço para podermos ver com a maior das clarezas o que se passa no dia a dia do nosso pais, e antervermos o que, se não tivermos cuidado pode vir a ser o nosso futuro.
Acho no entanto que existe um paradoxo no texto pois à medida que o vamos lendo ficamos cada vez mais com a impressão que nós somos as formigas (que trabalham sem parar) e que a cigarra pode ser interpretada como os governantes e os detentores do poder, o que faria com que no final todas as peripécias do SNS fossem vivenciadas pela formiga, como resultado de um acidente de trabalho, e não pela cigarra que teria acesso aos melhores cuidados da saúde privada.
Parabéns pelo fabuloso texto.
Utópico, talvez o paradoxo seja intencional: gosto de finais felizes ;)
Nãããããooo... eu não acabei de ler isto.... ESTÁ GENIAL, caro Catsone! Primeiro que tudo, é fofinho! E, depois, é tão verdadeiro que até dói... Um verdadeiro momento de inspiração! =)
Adorei a moderna versão dessa fábula!rs Bela participação! beijos,chica
Bríseis, obrigado. Infelizmente a parte dos cuidados de saúde de Insectolândia anda pelas ruas da amargura...
Chica, obrigado. bjs.
Excelente! Parabéns!
Abraços
José Jaime
http://cafofodovovo.blogspot.com.br
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