01 novembro 2010

O que serei?

O Francisco Vieira, do "Namorado da Ria", propôs, há algum tempo, um concurso literário no seu blog. Participei com um poema que escrevi há um boa mão cheia de anos atrás e que nunca tinha publicado neste estaminé.
Nota: acho que dava uma boa música rap...

O que serei?!


Sou ainda criança
E perguntaram-me:
“O que queres ser quando fores adulto?”
Pensei e disse:


“Não quero ser professor
Porque não seria respeitado.
Não quero ser médico
Porque tenho medo de advogados.
Não quero ser artista,
Aqui não existe arte
Só se vê lixo, na televisão
Na rádio, em toda a parte.


Eu decidi, não serei polícia
Porque seria mal compreendido,
Seria obrigado a multar
Em vez de prender um bandido.
Não quero ser jurista,
Teria desgosto no tribunal,
Lutaria por justiça
Mas não há justiça em Portugal,
Quem é réu faz o que quer
E amanhã é 1ª página do jornal.


Não quero ser pedreiro,
Serralheiro, pasteleiro,
Carpinteiro, carniceiro,
Carteiro ou outro “eiro”,
Pra quê? Trabalhar tanto
E não ver a cor do dinheiro?
Olho pr’os meus pais
Que trabalham o dia inteiro
Para satisfazer meus anseios
E no fim falta sempre mais.


Teria medo de ser operário
E viver no fio da navalha,
O governo joga a rede
Mas só o pequeno fica na malha.
Não quero ser bombeiro
Perder-me nas chamas dos Agostos.
Não quero ser comerciante
E viver para pagar impostos.
Não terei qualquer profissão,
Qualquer diploma ou ofício,
No país que tenho hoje
Todo o saber é um desperdício.


Não quero ser padre
Porque minha fé é verdadeira.
Não quero ser crítico
Não gosto de dizer asneiras.
Também não serei escritor
No país que esqueceu Camões e Gil Vicente,
Preferem falar inglês
Em vez de português fluente.
Não quero ser digno
Porque seria um otário,
Num país que ama o desonesto
E o conto do vigário.



Ainda não decidi o que quero ser,
Falta ainda muito tempo,
Espero que ao crescer
Não aumente meu desalento,
Ver meu país a perder
A corrida do desenvolvimento
E contentar-se em ser pequeno
Perdendo-se num sentimento
De inferioridade quase obsceno”.

Não, não sei o quero,
Não me apressem
Que sou apenas uma criança
E no futuro quero lembrar-me
Que pelo menos tive infância.


11 comentários:

Carlos Albuquerque disse...

Não sei se daria, ou não, uma boa música rap. A música é seara que nunca consegui ceifar. Ouço-a, gosto ou não, e fico-me por aqui, considerando que quem a consegue escrever, ler e interpretar vive num mundo a que gostava de pertencer...É um dos meus complexos!
O que sei, sim, é que este texto, lavrado num campo de poesia, ao compasso do bater da alma, é uma visão, a um tempo critica e irónica, do país que somos. "Toca" em tudo. O facto de saber que ele correu pela pena de um médico faz-me crer que o meu país não está tão mal como parece...!
Um abraço, caro Catso. Tudo de bom para ti e família (como vai o membro caçula?).

Lala disse...

"Não, não sei o quero,
Não me apressem
Que sou apenas uma criança
E no futuro quero lembrar-me
Que pelo menos tive infância."
Esta foi a parte que mais me emocionou. Sim fiquei emocionada ao lembrar-me que na pequenez de país em que vivemos (e no mundo) muitos pequenos grandes meninos já são algo e ainda não são "grandes".
Emocionei-me porque a infância deveria ser uma recordação para toda a vida... para todos.
Gostei bastante desta tua forma poética de mostrar o teu desagrado... ;)
Bjs!

João Roque disse...

"Clap, clap, clap", muitas e muitas...
Bravo.

Sahaisis disse...

Eu gosto ;)

Catsone disse...

Carlos, não sei escrever música. Do dó até o si, tudo é mistério. Mas a música é, para mim, o transporte mais rápido à memórias antigas. Escrevi isto há anos, nem lembro mais do fulano que fui nessa altura, mas algumas intenções perduram.
Quanto à caçula, vai bem, crescendo e evoluindo todos os dias.
Abraço.

Lala, tens toda a razão. Existem meninos e meninas neste país que passam directo para uma idade adulta precoce. Não deve existir maior crime. Bj.

Pinguim, gracias :D

Sahaisis, fico satisfeito.

meldevespas disse...

Assim que comecei a ler, lembrei-me da Doris Day
"Que Sera, Sera,
Whatever will be, will be
The future's not ours, to see
Que Sera, Sera
What will be, will be."
Mas o teu poema é muito menos idilico eheh.
É cortante e critico e eu gosto muito disso, e sim, daria com certeza um bom rap
Beijinho

Sahaisis disse...

p.s: não tenho jeito para comentar estas coisas ;)

Carlos Albuquerque disse...

Tens algo para ti na minha cubata. Passa por lá, por favor.
Abraço

João António disse...

Há um selo para si lá no meu canto.
É um apreço pelo seu espaço.
Abraço

su disse...

muito bom. se foi escrito há uma "boa mão cheia de anos" está demasiado actual. pelo o que escreveste, este país não melhorou nada. só piorou. porque, como a lala diz e muito bem [infelizmente], hoje há muita criança que amanhã vai querer esquecer a infância que nuca teve.

abraçinho..

Catsone disse...

Caminhante, cada dia mais actual, infelizmente...
Bj