Dead man
Carlos estava preso. Tinha sido encomendado à morte e aguardava agora ansioso para lhe encontrar a foice. Estava cansado de esperar e a angústia lhe apertava o coração agónico.
Levantou-se naquela manhã para espreitar o longo corredor que via da pequena janela da porta; mal conseguia ver onde terminava. Disseram-lhe que seria por ali que passaria pela última vez. Sentiu um previsível nó no estômago, mas não resistia a essa investigação diária do seu último caminho, como se perguntando se ainda estaria lá.
Pensava muito na sua sentença. No início sentiu uma revolta enorme. Sentira-se sempre inocente e vociferou contra aquela injustiça. Agora, passados alguns meses, depois de meditar e conversar com aquelas paredes brancas, reconhecia a sua culpa. Já não adiantava chorar, bater com as mãos no colchão duro ou com a cabeça nas paredes. “O que está feito, feito está”, e rendeu-se…
Estava decrépito, exausto, perdera o apetite e, ao observar-se no espelho, também o amor próprio.
Restava-lhe aguardar até que o carrasco lhe viesse buscar.
Nessa mesma manhã esperava pela visita do melhor amigo, e advogado pessoal, Dr. Dias. Ansiava por esse contacto semanal como alguém, perdido num deserto, anseia por um oásis.
“Olá Carlos. Como está?”, sussurrou-lhe ao ouvido durante um longo abraço.
“Ó Dias, uns dias mau, outros pior. Há períodos em que não me conformo mas, mesmos esses, são cada vez mais raros. Estou farto de esperar e é isso que dói! As tuas visitas lá me vão elevando um pouco a moral”
“Amigo, folgo em saber que, pelo menos para isso, posso ser útil”
“Dias, falaste com os daqui? Ainda posso ter esperanças?”
“Carlos, falei com o Dr. Vasconcelos. Não há grande esperança e, embora não possa ser preciso quanto à data, não tens muito mais tempo.”
“Porra, pá! Então que cumpram logo essa sentença!”
“Sabes que essas coisas não são assim. Existem ordens Superiores… vais ter que te aguentar”
Depois de mais alguns minutos de conversa, os amigos despediram-se:
“Ainda te volto a ver, Dias?”
“Posso não estar aqui quando te fores…”
“Deixa estar, amigo, levo-te no coração na mesma” e sorri em despedida.
Carlos acordou a meio da noite em sobressalto. À sua volta 5 pessoas lhe tentavam manietar. Quatro deles lhe seguraram os membros enquanto outro lhe injectara algo nas veias.
E sentiu tudo à roda, pouco a pouco deixou de resistir. Tinha dificuldades em respirar e mal ouvia o coração: Deixou-se ir.
Os 5 mantinham-se à sua volta, controlando seus sinais vitais, até que Carlos, finalmente, encontrou a foice.
“Estou? Posso falar com o Dr. Dias?”
“É ele mesmo. Quem fala?”
“Olá, Dr.. Aqui é o Dr. Vasconcelos. Tenho a informar que o Sr. Carlos faleceu esta noite.”
“Meu Deus, não me diga…”
“Ainda tentemos reanimá-lo. Injectamos alguns fármacos endovenosos, mas nada. Sabe como é, o Sr. Carlos estava em fase terminal, certo? Infelizmente, é o nosso dia-a-dia aqui nos Paliativos. Sinto muito. Continuação de bom dia”.
Nessa tarde, Carlos percorreu o tal corredor muitas vezes, por ele, observado.
E foi o início da sua última e mais longa viagem...
Luís Fernandes Lisboa ®
11 comentários:
é engraçado que pensei imediatamente que o Sr. Carlos seria um doente em contexto paliativo..lolol
p.s: às vezes gostava de ter jeito para escrever assim como tu ;)
Arrepiante este texto. Esse corredor aguarda-nos a todos.
Muito bom
Linda inspiração e participação!abraços,chica
Realmente, um corpo assim doente é uma última prisão.
Há sempre aquela reviravolta... sacana :)
Muito fixe.
Esse corredor pelo qual todos passamos, e apenas não sabemos quando, torna-se um pesadelo quando estamos conscientes, que devido a um mal, a passagem por ele está próxima...
Essa longa viagem está marcada para todos nós, passando ou não pelo corredor de acesso. Neste tema do desfio de Agosto, ainda pensei muitas vezes em utilizar esta metáfora da morte, mas desisti. Bom texto.
Folgo em saber que mudaste para um clube respeitável!
Sahaisis, epá, assim não vale, perde a piada quando desconfias do final :)
E não digas que não sabes escrever! Levanta essa auto-estima, rapariga!
Mel, um corredor, uma estrada, uma praia. A mulher da foice é uma chata! bj
Chica, obrigado.
Matador, podes crer. E a espera pelo desfecho deve ser tenebrosa.
Abraço.
Johnny, sacana não: sacaninha. Sacana é o meu pai; é a hierarquia :D
Abraço.
Pinguim, e no serviço de paliativos sente-se isso mesmo. É surreal as sensações a que se está sujeito.
Abraço.
Luísa, bem vinda a este blog. A minha intenção não era bem utilizar a morte. Ela apareceu mas com actriz secundária. Aqui nem a viagem era importante ;)
Bj.
Amigo Cirrus, a AAC está sempre a frente, mesmo em jogos contra o FCP.
Porta-te.
Já nascemos encomendados. Só que o correio chega a tempo diferente, a cada um de nós. É tudo uma questão que tem a ver com o carteiro, umas vezes surge-nos de mãos a abanar, outras trazendo uma senhora que nos quer levar para o tal corredor...
Com quem não adianta discutir, porque não passa de uma puta, escreveu Lobo Antunes.
Cá por mim não curo de saber o que ela seja. Pura e simplesmente não lhe passo cartão!
Então, e depois? Depois? Logo se verá.
Gostei de ler este "Dead man", apesar da pele de galinha que se me foi aparecendo à medida que ia passando pelas palavras.
Presumo que o Carlos ( ai o meu nome!)tenha feito a sua última viagem sereno e tranquilo.
Grande abraço
Todas as esperas são angustiantes mas,esta é sem dúvida a pior de todas.
bj
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