À beira
Júlia subiu à grade daquela ponte sobre o rio Zêzere e respirou fundo. Tinha decidido saltar e não havia nada nem ninguém que a impedisse.
Olhou para o céu azul de início de primavera e fechou os olhos tentando absorver cheiros, ruídos e o calor ténue do sol. Uma brisa lânguida lambia-lhe a face.
Olhou para baixo e calculou o tempo da queda; vislumbrou o rio a correr calmamente, como que ignorando o que estava para acontecer, e bandos de pássaros a pulular entre árvores no festim do cio primaveril.
Júlia planeara isto há algum tempo mas, no entanto, faltara-lhe sempre a coragem necessária. Chamaram-na fraca muitas vezes ao longo da sua curta vida, mas agora iam todos ver do que era capaz. Já não tinha dúvidas e agora faltava pouco tempo para o concretizar.
O seu coração quase não dava conta do recado.
Ultrapassada a grade, Júlia postou-se mesmo a beirinha da imensa construção de betão, agarrada à vida por um fio, suando frio, mas decidida. Cantarolava “I believe I can fly” por entre os dentes de forma a ignorar a ansiedade que a consumia. Sentia dores lombares de tanto trabalho que dava às suprarrenais.
“Vai Ju, força, é só mais um passo”, tentando empurrar-se com a mente.
Baloiçou os braços, respirou o mais fundo possível, cerrou os olhos… saltou…
Partiu em silêncio.
Sentiu um frio no estômago e uma sensação de êxtase nunca antes vivida. Seguia naquela queda vertiginosa mas que, ao mesmo tempo, parecia-lhe em câmara lenta. Podia ver a ponte a afastar-se em direcção ao céu e o rio a aproximar-se majestoso.
Pensou… pensou muito durante aquela viagem.
Pensou no trabalho rotineiro das 9 às 5; trabalho mecânico sensaborão, arranjado por um amigo de um amigo, numa empresa tipo “João sempre-em-pé”, tipo vai-não-vai para esfumar-se. Seca, chatice, maçada.
Pensou nas relações falhadas, nos tipos com quem saiu, nos tipos para quem se entregou e nos restantes. Pensou nos flirts, nos affairs, namoriscos que experimentou e tampas que aplicou. “Os homens, esses inúteis”.
Pensou nas dívidas, nas contas mensais, nas coisas que gostava de ter e, principalmente, no dinheiro que não tinha.
Pensou na família, nos amigos… nos inimigos.
Pensou em tanta coisa e em tão pouco tempo, e nem o barulho do vento abstraiu-a dos seus pensamentos.
Mas já não tinha mais tempo para pensar. Acelerava para o fim da viagem, o rio ali tão perto. Sentia a fresquidão que emanava do curso d’água.
Abriu os braços e entregou-se de corpo e alma… o rio quase, quase…
Desacelerou. A velocidade que ganhara, dissipara-se num milésimo de segundo. Ainda tocou com os seus cabelos negros na água antes de ser puxada violentamente de volta para cima.
O elástico fizera a sua parte e, então, finalmente, Júlia gritou:
“Que se fôda tudo o resto, é tão bom estar viva!!!”
E a música que agora cantava era outra:
Luís Fernandes Lisboa ®
Foto: www.panoramio.com
26 comentários:
“Que se fôda tudo o resto, é tão bom estar viva!!!”
Nem mais!!! Contra tudo e contra todos! Grande Júlia que teve coragem de fazer o que eu ainda não tive... experimentar um salto vertiginoso e ter tempo para pensar a sério no emprego, nas contas, na família, nos amigos... na vida!
Muito bom!
beijinhos :)
Muito bom, adorei o final inesperado e a maneira como o tema foi abordado.
Era bom que todas as vezes que alguém vai dar um passo para o abismo tivesse ligado a um elástico chamado Esperança...
Lindo!!! Lindo!!!! Que se foda mesmo!!! Belíssimo texto!!
muito bom, mesmo ;)
Coisa linda e adorei o fim!beijos,linda Páscoa!chica
Helga, tb dava um salto desses ;)
bj
Nénix, bem-vindo à esta casa. Obrigado pela tua opinião. Abraço.
Cirrus, amigo, vindo de ti fico lisonjeado. Abraço.
Sahaisis, gracias ;)
Chica,obrigado e boa pascoa para ti tb.
Uau.... alta descrição, adorei! Por momentos pensei mesmo que ela se ia suicidar. E sim é muito melhor estar viva e sofrer, do que não sofrer e estar morta... mais uma vez Parabéns. bjs
Mas que texto mais lindoooo!
Sua escrita é belíssima, tens "aquele" dom!
Linda participação!
Ok, já imaginava que a rapariga tinha mesmo ido rio abaixo! Ainda bem que havia um elástico! Gostei!
Sandra, não tenho tido tempo para visitar outros operários, mas vou tentar ver a tua contribuição. Bj
Poetic, era mesmo essa a minha intenção ;) obrigado e um bj
Ana, bem vinda e obrigado, assim me deixas corado ;) Bj
Teresa, há sempre um elástico, o problema é que as vezes parte-se :D
Bj
".. é tão bom estar viva", adorei =)
Muito bem*
Bem me lixaste com o final... já tinha um comentário preparado quando ia a meio do texto, e agora tornou-se obsoleto. :|
É bom estar-se vivo sim. Eu pessoalmente, acho o máximo! :p
*
Muito bom Cat! Estava tão embebida no espirito do texto, nas fraquezas da Júlia, os seus deseperos e angustias e tudo tudo e...bem! Gostei imenso, valham-nos os elásticos!
Muito bom Catso, gostei do twist final.
Por entre o luar, gracias ;)
Ginger, eu sou assim, lol, estou sempre a iludir. ;)
Mel, obrigado. Bj
Matador, tks.
Boa pascoa para todos!
Texto sublime, como sempre. Combinar uma imaginação fértil com uma capacidade narrativa acima da média não é nada fácil, mas tu consegue-lo, sem duvida.
É um tema que me diz muito, mas nem sempre consigo escrever sobre ele. Veremos se sai alguma coisa a tempo de ser publicado lá na unidade fabril. :)
Abraço
Ó caríssimo Gravepisser, assim fico brumelho, carago... :D
Tão bom, tão libertador... a vida não corre como quero, mas estou viva. É isso, é mesmo isso. Adorei (até porque estava a precisar de algo assim).
:)
já lá andei a pé a pensar como seria fixe fazer ali um salto desses, mas também pensei que seria difícil ter coragem para o fazer. É bué alta e acho que é uma das mais altas... pelo menos de Portugal. Para além disso, a recta é espectacular, servindo os propósitos de quem gosta de andar mais para o rapidinho... também foi ali perto que me apanharam rapidinho e tive de pagar 120 euros - e tem uma vista lindíssima da barragem.
O texto também está muito bom.
Vim conhecer seu blog. Já que vi sua participação na fábrica das letras.
Carinhosamente,
Sandra
http://sandrarandrade7.blogspot.com
Estava tão envolvida na história que me apanhaste desprevenida... eu pensava que era a sério, Catsotne!
Ainda bem que não houve suícídio... este 'Abismo' foi maravilhoso quando ela gritou “Que se fôda tudo o resto, é tão bom estar viva!!!”
(risos)
beijinhos
Adorei! Achei que ela tinha de viver de alguma forma e afinal viveu, pensei vai criar asas e criou de certeza, a Julia nunca mais vai ver a vida da mesma forma. Fantástico!
Susana, obrigado ;)
Johnny, por acaso já passei por ali várias vezes e imaginei-me saltando tb. Dá para acelerar muito ali, realmente, mas nunca vi a gnr a multar, tiveste azar...
abraço.
MZ, eu sou assim, gosto de enganar as pessoas ;)
Olga, mal conheço a moça e não ia matá-la, coitadinha ;)
Não foi ali, foi mais à frente (deixa cá ver a cartinha)... diz assim: IC8 Km 124,3 Proença-a-Nova Comarca Sertã, mas queria dizer que a estrada era a mesma, ou seja, apenas 90. Pois, pois.
Genial. Percebeste??? Genial! Eu também tenho um elástico desses...! Chama-se Carolina, a minha filha!
Sou até capaz de lhe dedicar o que aqui acabei de ler! Obrigada, Catsone!
Beijinho***
Lala, até fico sem jeito... obrigado.
Também tenho um elástico como o teu: uma pequena.
Bj
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