02 março 2010

A menina que se esqueceu de falar

Em resposta ao desafio "Silêncio" da Fábrica de Letras:


A menina que se esqueceu de falar

“Silêncio!” e uma mão cheia de dedos acerta-lhe em cheio na face.

Helena nascera num dia esplendoroso de verão, um dia sem nuvens e sem brisa. Gritara desde o primeiro instante de vida e, logo aí, recebera uma palmada nas nádegas.
Ao longo dos primeiros tempos pouco estímulo teve para falar. Sua mãe nunca estava e seu pai nunca estivera. Não tinha irmãos, não tinha amigos, não tinha ninguém com quem trocasse uma palavra recém-aprendida.
Vivia no silêncio de uma casa pobre. Pobre de recheios e, mais grave, pobre de movimentos e de vida. Tinha um espelho e era aí que dialogava consigo mesma, trocando palavras toscas e enroladas que só o seu reflexo entendia.
Assim passou a primeira infância.
Nas raras oportunidades que teve para falar com a mãe, era interrompida por um “cala-te!”, “’tá quieta” ou, se a progenitora estivesse mais bem disposta ou sóbria, um “Silêncio!”, sempre acompanhados de uma palma da mão. Helena era filha de um projecto comercial. Um efeito colateral de uma transacção de negócios da sua mãe e esta não lhe empregava muito do seu tempo.
Helena foi sendo autodidata e aprendeu o que ouvia entre as paredes, por trás das portas e às janelas, tudo desvirtuado e distorcido que mesclou numa espécie de dialecto estranho.

Aos 6 anos, Helena foi para a escola. Sua forma de falar provocava risos nos colegas que passaram a ridicularizá-la. Chamavam-na retardada, sem compreender que para ser bom em algo é necessário treinar. Helena não tinha oportunidade de treinar falar com ninguém e fechava-se cada vez mais. Os seus colegas eram retardados em afecto.
“- Prgofegssora, pgosso i à c’sa de bganho?”
“- Helena, cala-te, vais ao intervalo!”
“- Sgtora, e se essa respogsta!”
“- Silêncio, menina, agora é o teu colega a responder!”

“Cala-te”, “Não digas nada”, “´tá calada”, “Shhhhiiiiiiiiiuuuuuu!”

Não tinha parceira de carteira, não tinha lugares em grupo, era um pedaço de gente rodeada de preconceito por todos os lados.
À esta altura, Helena começava a pensar que falar não era solução. Optou pelo silêncio. Estava cansada das conjugações dos verbos "calar" e "silenciar" direccionadas violentamente contra ela.
Helena calou-se e demorou muito tempo para que se ouvisse algo dela.
Passou os anos da escola com boas notas gerais penalizadas apenas pela fraca participação nas aulas. Já não levantava a mão, não perguntava, não se “engrupava”, tornou-se a eremita da turma. Preferia falar consigo mesma, interiormente, já que não se mandava calar a si mesma.

Amplificou a arte de ouvir, especializou-se em ver, deixou a habilidade de falar para os outros e nunca se arrependeu.
Quando jovem aprendeu a linguagem gestual e mandava fod#$ aqueles que não a compreendiam. Helena cresceu e tornou-se uma mulher de enorme carácter, de mais acções e de menos (nenhumas) palavras.

Foi então que, num dia de verão radioso, sem nuvens e sem brisa, conheceu um simpático jovem. Era um rapaz que também não falava. Mas, ao contrário dela, não falar para ele não era opção: estava privado pela natureza.
Compreendiam-se muito bem através da arte dos sinais e brincavam sobre o que liam nos lábios dos outros. Tornaram-se cúmplices dos mesmos crimes e nunca precisaram sonorizar nada um ao outro.

Helena estava feliz pela primeira vez na sua vida. Apetecia-lhe dizer o que lhe ía na alma. Apetecia-lhe gritar, explicar ao mundo o que o seu coração sentia . Mas há tanto tempo que nada dizia que sentia a garganta enferrujada e tinha dificuldades de iniciar o árduo processo de falar.
Olhou para o seu rapaz, que lhe sorriu, encheu-se de coragem e força e da sua boca ouviu-se pela última vez a sua voz… num caloroso, sonoro e apaixonado: “amo-te”.
E depois, para sempre, apenas o silêncio...

Luís Fernandes Lisboa ®

31 comentários:

Helga Piçarra disse...

Que posso dizer... fez-me chorar.

Beijinhos :)

Ginger disse...

Muito bonito e triste.

Caramba. =|

Tá mesmo bonito, pá!


*

El Matador disse...

Muito bom mesmo.

Fia disse...

Wow. Que bonito. Parabéns, manteve-me presa do início ao fim!

Johnny disse...

E os dois sempre a mandar pó car@{8 os outros todos ^^

Fábrica de Letras disse...

E a canção também está fixe.

Eliete disse...

Gostei muito desta história. Calo-me profundamente...Eliete

Carina disse...

adorei!

*

Poetic Girl disse...

Fantástico! Toca bem cá dentro... bjs

Catsone disse...

Helga, não era o meu objectivo, mas saber que te tocou assim deixa-me lisonjeado. Beijinhos

Ginger, vindo de uma escritora como fico deveras satisfeito ;) *

El Matador, tks friend

Dia, bem-vinda a esta tasca e obrigado

Johnny, deviam ir para a assembleia ou para um treino do FCP mandar aqueles fulanos pró...
Abraço.

Fábrica, este fulano é um génio... à sua maneira ;)

Eliete, obrigado, não precisas de te calar, fala à vontade :P

Ana, obrigado *

Poetic Girl, então consegui meu objectivo, certo? Bj

Lala disse...

letra a letra te escrevo aqui um F-A-B-U-L-O-S-O! não leias em voz alta. guarda para ti nos teus pensamentos. É tristemente fantástico este silêncio que culmina num "felizes para sempre... em silêncio".

Parabéns!!

beijinhos**

Francisco José Rito disse...

Muito bem conseguido Cat! Parabens.

Olha que ainda nao tinha vindo aqui. Nao vas pensar que te roubei a Helena :-)

Abracos e uma boa noite

Catsone disse...

Lala, o-b-r-i-g-a-d-o ;)

Francisco, tem piada que quando li o teu post pensei no mesmo. 'Távamos em sintonia, friend. Grande abraço.

Brown Eyes disse...

Tu acabas por ter aqui 3 participações excelentes. O conto está muito bem traçado e refere um grande problema desta sociedade: não ouve os outros. Problema que acabou por afectar a Helena que, como era uma miúda forte, superou tudo e conseguiu a felicidade. Este teu conto é um incentivo às pessoas que a sociedade faz troça, incentiva-as a não a ouvirem e a vence-la. Maravilhoso
Beijinhos

Sahaisis disse...

lovely (not being ironic)

meldevespas disse...

Tão bonito!
Gostei muito da forma como descreveste esta Helena, sem nunca cair no sentimentalismo, e no entanto a tocar-nos bem fundo.
Adorei.
Beijinhos

Su m disse...

Que pequeno excerto tão tocante. E só de pensar que a Helena é real...
Felizmente na tua história encontrou alguém que a compreendia.

Muito bonito mesmo.

Catsone disse...

Brown, obrigado pelo teu coment. Realmente os preconceito vingam muitas vezes, mas há que luar. Bj

Sahaisis, tks ;)

Teresa, aceito o teu convite, sim senhora. Bj

Mel, obrigado.

Su, obrigado. Existe sempre alguém que nos compreende, afinal somos 6 biliões... ;) Bj

Helga Piçarra disse...

Obrigada por aderires ás 'Planícies', gostei muito de te ver por lá. Já agora e a título de curiosidade, queria saber se por acaso comentaste alguma coisa, é que os meus comentários estão a desaparecer, não sei bem porquê. Gostava de saber se são apenas os meus ou se os dos visitantes do blog também desaparecem.

bjs :)

João Roque disse...

Lindo!
E não sei porquê, até por não haver nenhuma relação directa com o caso do miúdo de Mirandela que se suicidou, lembrei-me dele...

chica disse...

Liundo e tocante!beijos,chica

Catsone disse...

Helga, o prazer é meu ;) por acaso não fiz nenhum comentário lá ainda. Não tenho tido tempo para visitar os meus amigos da coluna direita e só venho cá agradecer aos que me deixam um comentário. Mas prometo que dou uma passada por lá, bj.

Pinguim, obrigado. Parece que ele era vítima de bulling, certo? Mas foi suicídio mesmo?
Abraço, friend.

Chica, obrigado. Bj

mz disse...

Gostei muito da história.
Foca a realidade nas escolas e a crueldade que muitos jovens e até mesmo crianças têm para com os que são diferentes, (físicamente ou outras dificuldades)no fundo a Helena foi vítima de "Bullyng"...

bjs

Por entre o luar disse...

Gostei mesmo =) descrição muito boa e profunda...

O vídeo esta engraçado*

Catsone disse...

MZ, não foi muito a minha intenção falar de bullying, ou bulling, ou seja lá o que for, mas tens razão e acabou por coincidir com uma altura em que se está a falar disso.
Abraço.

po entrre o luar, bem-vinda e obrigado ;)

Carlos Albuquerque disse...

Este é um poema em prosa. A flor nascida e crescida numa casa pobre de movimentos e de vida, sensibilizou-me!
O texto tem o mérito, de que nem todos são capazes, de nos "agarrar" à leitura, buscando-lhe o fim.
É, também, perdoa a expressão, um murro no estômago desta sociedade que exclui e maltrata os que são diferentes, ou forçados a sê-lo.
Parabéns, e à Fábrica por ter quem assim escreva para ela.
Um abraço

Catsone disse...

Carlos, assim fico sem jeito ;)
Obrigado, principalmente vindo de quem escreve tão bem.
Abraço!

Teresa Diniz disse...

Catso
Só agora vou conseguindo ler as outras participações da Fábrica e cheguei aqui. Gostei muito do texto. É engraçado que também me tinha lembrado de ficcionar com uma protagonista surda-muda, para este desafio da Fábrica. Mas aqui a mudez é induzida pela sociedade. Concordo com o Pinguim, faz lembrar o menino que se suicidou. No teu texto, é a sociedade que pratica bullying sobre a Helena. Felizmente, ela deu a volta por cima.

Catsone disse...

Olá Teresa.
É como eu, já viste a quantidade de textos na fábrica? Não é fácil acompanhar tudo, e eu que ando atarefado com outras coisas...
Mas não vou deixar de ver o que escreveste ;)
bj

By Me disse...

A MENINA NÃO SE ESQUECEU DE FALAR ...IMPEDIRAM-NA DE O FAZER...E NA REALIDADE ISSO TEM GRAVES REPERCUSSÕES A NÍVEL PSICOLÓGICO...A HISTÓRIA ESTÁ FICCIONADA E BEM CONTADA.
HOJE,O QUE ACONTECE É QUE NINGUÉM CONSEGUE OUVIR NINGUÉM ...HÁ IMENSO RUÍDO.INFELIZMENTE PARECE QUE AS PESSOAS SÓ SABEM COMUNICAR DESSA FORMA.

UM BOM ENREDO.
PARABÉNS

Catsone disse...

Pedras, obrigado.
Bj