, O Sr. Fulano entra no gabinete. Sente dificuldades para se sentar. Aumenta a distância que separa a cadeira da secretária para que esse espaço possa albergar, com algum conforto, o seu volumoso ventre.
O Sr. Fulano é um sujeito bonacheirão, o gordo simpático. No seu corpo alberga um tratado de patologia, ele é obesidade mórbida, hipertensão, diabetes, dislipidémia mista, gota, artroses e desgostos.
O Sr. Fulano é um senhor de vícios: álcool, tabaco, venham eles! Nas patuscadas com os “amigos” ele se sente bem…
Falo com o Sr. Fulano para o alertar dos perigos a que está exposto. Aconselho-o a mudar estilos de vida, parar com as adições, alertar para os perigos das amizades de tasca, fazer exercício físico.
Aí começam as desculpas: “porque me doem as pernas”, “também não tenho tempo nem hipóteses de caminhar”, “é difícil deixar de ir ao tasco, xótor, meus colegas chateiam-me e tenho que beber um copo… ou mais”, “não gosto da comida insonsa”, “o que são orégãos?”, “eu como pouco, não sei porque engordo” e o famigerado “prometo-lhe que vou mudar e da próxima vez já vou estar mais magro!”.
Entretanto o Sr. Fulano sai do gabinete equipado com credenciais para análises completas (comparticipadas a - quase - 100%) que irá fazer antes da próxima consulta (que não paga por ser isento) e medicação (quase totalmente gratuita, já que a maioria é genérica). Um doente que custa ao Estado uns bons milhares de € anualmente; mas isso não interessa, eu continuo a achar que a saúde deve ser, tendencialmente, gratuita.
Fiz a minha parte.
Então o dia de trabalho acaba. Entro no meu popó e vou até a padaria comprar uns pãezinhos acabados de sair do forno (a minha mais pura adição).
A padaria situa-se numa esquina e logo aí vejo a incrível mania do português em deixar o carro à frente da porta. Não importa se atrapalha o trânsito, o que interessa é estar o mais próximo possível do local onde se quer ir. É perdida uma hipótese de caminhar.
Deixo a minha viatura no parque do prédio (completamente vazio, já que os outros clientes aglomeraram os respectivos automóveis no meio da estrada à frente da padaria) e caminho 20 segundos até a porta.
Lá dentro vejo algumas das pessoas que dizem aqueles “clichés” que transcrevi antes.
Entre os espécimes está o Sr. Fulano devidamente apetrechado com uma mini e um prato de orelha de porco e moelas de frango que bóiam num molho vermelho e reluzente.
Quando me vê o Sr. Fulano sorri desconsertado. Eu não digo nada; não sou seu pai e a minha fatiota de médico deixei no centro de saúde.
Carrego a mercadoria que pedi e vou-me embora.
No caminho ponho em causa todo o meu trabalho. Para quê levantar às 7 da manhã? Para quê gastar o meu latim, a minha saliva e o meu saber? Para isto? Para quê me esforçar para garantir que os serviços de saúde sejam praticamente de graça? Para que todo esse esforço para garantir que, este candidato a um AVC ou enfarte agudo do miocárdio (EAM), possa viver mais algum tempo com qualidade de vida?
Mas a pergunta fundamental: para que me preocupar com isto? Tenho uma vida e é nela que tenho que pensar. Começo a deixar de me preocupar em salvar almas, deixo essa tarefa aos senhores padres.
Vou para casa e passo um pouco de manteiga (magra) no pão ainda a fumegar. Entre uma dentada e outra desejo que, quando o Sr. Fulano tiver o seu EAM, este seja fulminante, para que, pelo menos, não nos fique ainda mais caro.
(Tudo isto é fictício…
será?)
9 comentários:
Não, não será... Digo eu...
Deve realmente ser frustrante... mas peço-lhe, em nome daqueles que cumprem as regras e que só vão ao médico quando realmente se justifica esperar uma manhã inteira numa sala de espera, cheia de gente que não se contenta em ter partido as duas pernas, teve que partir logo três, peço-lhe que entre uma e outra dentadinha no seu pão quente com manteiga, não pense no Sr. Fulano, mas sim nos outros... naqueles que justificam sair da cama ás 7 da manhã.
Bjs :)
"O que são orégãos?"
AH AH AH! =D
Pá, fizeste o teu trabalho, ou não foi? E bem feito por sinal... o resto cabe ao paciente.
Enquanto o gajo não tiver um valente susto não aprende.
O meu pai é diabético, já numa fase grave. Não tem cuidado nenhum. Mas mesmo NENHUM. Dá vontade de lhe pregar um estalo!
- "Oh pai! A beber Coca-Cola?!? Carago, ao menos bebe Cola Light!"
- "Isso dos lights é coisa de mulheres!!"
E pronto... o que é que se há-de fazer?
Enfim...
Há muitos anos atrás parecia o Sr. Fulano. Então, certo dia, um primo meu, médico, que já não está entre nós, perguntou-me assim, tal qual: queres continuar a viver, ou morrer antes de tempo? Foi como se me tivesse dado um "abençoado" murro no estômago. Passado o instante de estupefacção, segui o que ele me aconselhou a fazer. Não voltei mais a parecer-me com o Sr. Fulano, embora mantenha o vício do cigarro. Quão grato fiquei àquele primo médico que, como tu e eu, pertencia ao reino dos "otários".
Isto para te dizer: não desistas, nunca de salvar, uma alma que seja!
Não dispas a tua bata branca.
Se não forem os "otários" o que será deste mundo!?
Um grande abraço.
e sabes a melhor, quando o gajo tiver o bom do enfarte ou do AVC, adivinha de quem é a culpa da coisa correr mal? Bom, não é? Eu falo por mim...overweight, avô morto de avc hemorrágico, familia repleta de hipertensões dificeis de controlar, não me controlo particularmente na alimentação mas não cometo excessos extraordinários e ando, ando que me farto...se eu morrer que seja do incontrolavel, verdad?
Claro que é fictício, tu não comes manteiga magra pois não?! Mais vale comer o pão "com dentes", falta de sabor por falta de sabor :P
Nada de ficticio e nao te condeno os pensamentos.
Tambem defendo o atendimento gratuito na saude a 100%, mas um utente assim nao a merece.
Tinha um cliente que foi fazer uns quantos by pass (nem sei escrever isto). Cortaram-no nas brilhas dos dois lados e mais nao sei o que, e quando saiu do hospital veio direitinho ao tasco, ainda com a argala, beber cafe e brandy. Disseram-lhe que tinha que perder 40kgs de peso e na proxima consulta pesava mais 7...
Eu nao sou santo nenhum no que toca a cuidados com a saude, nem sou ninguem para julgar os outros, muito pelo contrario. Se tu ganhas a vida a cura-los, eu vendo os ingredientes para os adoecer, mas sim, acho que um doente que da despesa ao estado para o salvar e que depois nao muda os comportamentos, nao deveria ter direito aos mesmos tratamentos gratuitos, consecutivamente.
Abraco
Cirrus, pois, talvez não...
Helga, não desisto de ninguém. Esse Sr. Fulano quando vier, leva nas orelhas novamente. a única questão é o facto de não dever (e não querer) tomar conta dos utentes fora do CS. Nunca desisto de ninguém que me procura por necessitar de auxílio para alguma coisa. 'Tá descansada ;)
(e se não te importares, trata-me por tu, certo?)
bj
Ginger, "santos da casa não fazem milagres". Tb tenho um desses em casa e sei o que é :P
Carlos, amigo, esse cigarrito, hã? Sem querer assustar, ainda hoje vi um caso de cancro na bexiga de um indivíduo que fumava... :X Faz lá um esforço e dá um prejuízo à Tabaqueira, anda lá! Abraço
Sahaisis, não me mói a consciência, amiga. Fazemos o que podemos e a mais não somos obrigados. Não é fácil convencer alguém, que não sente nada, de que está doente. Isso é uma guerra difícil de vencer. Bj
Rain, olha que como, sim senhora! E sem sal tb. Prefiro o pão com ar... ;)
Francisco, bom dia.
Estava curioso sobre um potencial comentário teu, meu bon vivant!
É verdade, tu és um dos nosso dealers. Com as comidinhas maravilhosas que apresentas no teu blog, não dá para resistir.
Costumo dizer aos utentes que "a vida são 2 dias" e se tiverem tento o 2º não precisa ser numa cama de hospital, lol, um pouco agressivo, eu sei.
Grande abraço.
Eu não me considero um senhor fulano, mas aproximo-me; tenho feito alguns esforços, pois consegui controlar a tensão que agora está desde há anos muito boa, deixei de fumar já há uns anos atrás e os resultados das análises periódicas a que a minha ABENÇOADA médica de família me obriga até nem são demasiado alarmantes; mas sou diabético (embora numa fase incipiente) sou um doente crónico cardíaco (angina de peito) e devia ter dois cuidados essenciais, que não tenho: alimentação e andar!!!
Precisava de emagrecer uns quilos, pois a minha mobilidade é algo limitada.
Promessas tenho feito muitas, mas nem sempre as tenho cumprido.
Obrigado pelo teu útil post.
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